sexta-feira, 24 de abril de 2015

Covilhã - Memoralistas ou Monografistas XVI

     Continuamos hoje a publicar os monografistas da Covilhã, começando com algumas reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias já publicadas neste blogue.
        
“Convém enumerar os autores de monografias da Covilhã, os cabouqueiros da história local, aqueles de quem mais ou menos recebi o encargo de continuá-la, render-lhes homenagem pelo que registaram para o futuro, dos altos e baixos da Covilhã, das suas origens, das horas de glória e das lágrimas, dos feitos heróicos e de generosidade e até das misérias dos seus filhos, de tudo aquilo que constitui hoje o escrínio histórico deste organismo vivo que é a cidade, constituído actualmente por todos nós, como ontem foi pelos nossos avós e amanhã será pelos nossos filhos. […]

Esta memória histórica que continuamos a apresentar, já publicada no volume I da “História dos Lanifícios” (Documentos), de Luiz Fernando Carvalho Dias, e designada por Memória das Fábricas da Covilhã, é cópia do original existente no Museu Britânico, que o investigador obteve, obsequiosamente, através dos irmãos William e Anthony Hunter, penteadores de Bradford na década de 50 do século passado, que conheceu em Lisboa, no Congresso da Lã, realizado em 1953.
A Memória, de autor desconhecido, foi citada, sem crítica, por diversos escritores, entre os quais J. Lúcio de Azevedo, mas nunca fora publicada, apesar do seu indiscutível interesse para a história económica, certamente, por a cópia conhecida da Biblioteca Nacional de Lisboa se encontrar deteriorada em longas passagens.
Quando o autor entregou à Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, no ano de 1939, o trabalho de que fora encarregado de elaborar, designado por “Aspectos Sociaisda Indústria dos Lanifícios e Subsídios para uma Monografia Histórica” (Relatório duma inquirição 1937-1938), incluiu alguns fragmentos desta Memória, segundo a versão existente na Bibioteca Nacional de Lisboa. Sobre ela refere: “que dá indicações muito interessantes não só sobre a fabricação dos panos, mas também sobre a psicologia dos industriais, mercadores e operários que a ela se dedicavam, no século XVIII. De certo modo, certos aspectos desta monografia são como que um inquérito industrial à indústria desse tempo e uma base de informação para a grande reforma pombalina.” 
   
MEMÓRIA  DAS FÁBRICAS DA COVILHÃ
[…]


Quanto ao clima, é este o mais singular para a natureza, que se encontra nas terras e povoações vizinhas; os ares são muito puros e saudáveis porque a mesma Serra a defende: No tempo do Inverno se experimentam bastantes frios pela aspereza de alguns ventos rijos, e também nela em alguns dias cai bastante neve, que se conserva a ela contígua dilatado tempo: as águas porém nas fontes são temperadas e parece que nada participam deste rigor; neste tempo costuma haver alguns pleurizes, mas pouco malignos: No Verão se não experimenta calor demasiado, porque na intensão do sol principiam a sombrar a maior parte das ruas; e o mesmo vento brando que de ordinário as refresca; nos meses porém de Julho, Agosto e parte de Setembro, se experimenta a maior calma; porque passado o dia de S. Lourenço se lança o fogo nos campos da Idanha, Castelo Branco, Penamacor e Raia, e com ele ficam os ares tão incendidos que alguns dias se não podem satisfazer os corpos da respiração; nesta quadra; e na do Outono algumas sezões se padece, mas são de fácil cura, porque com a quina se rebatem; e ainda que muita seja, não faz nos corpos aquele efeito maligno que em outras terras padecem, o que se atribui à qualidade das águas, que dissolvem.
Os frutos que se produzem são excelentes e saborosos; tem vinhos maduros em muita abundância; azeite, e castanhas, feijões, milho, grãos, lentilhas; centeio e trigo menos; porém não falta porque continuamente está entrando dos campos, que só destes dois géneros criam. Tem abundância de fruta temporã; de maçã e pera, e muito mais da serôdia de diferentes castas; as carnes que se criam são as de melhor gosto, que as de qualquer outra parte, e também delas é mimosa; assim como também de peixe do mar, pelo grande carreto que a ela fazem os almocreves, deste doutros géneros, que nela se não produzem, como é, fruta de espinho; e posto que em alguns quintais se criam estas árvores, ordinàriamente se destroiem com os ventos de inver­nos, e neves, e geadas; e o fruto que escapa é pouco e menos gostoso, produ­zindo nas estações do ano os mais frutos, sem excepção; também nela se não criam repolhos, espinafres e outras ervas mimosas.
Pelo que fica dito e ponderado é a dita Vila um dos melhores países na Beira Alta, porque nela se encontram as três circunstancias que fazem qualquer habitação gostosa: como é, bom terreno, saudável clima e muito abundante de águas e mantimentos.


A Serra da Estrela, parecendo tão áspera pela sua eminência, tem no alto dela, em distância da dita vila, quase duas léguas, campinas muito dilatadas; e tão assente o terreno, que nele, no tempo de Verão, se podem acampar mais de 8.000 homens; produz ervas de muito préstimo em tanta abundância, que os gados que nelas pastam todos os anos, são mais de 40.000 cabeças, desde a direitura de Unhais até à Vila de Gouveia. Também no alto da mesma serra há quatro lagoas; duas da parte do Norte, e duas do do Sul: estas são as mais famosas especialmente a chamada Escura, que se acha metida em rochedo, de todos os lados, fazendo figura como circular:
Da parte do Nascente tem um eminente penhasco superior aos dos mais lados; e o que mais nela se admira, é a profundidade e contínuo movimento da água, porque não podendo ser açoutada dos ventos, se move como as ondas do mar, fazendo retrocesso para os lados: terá de círculo, mil e seiscentas varas. A outra imediata tem menos largura e maior comprimento e desta nasce o Rio Alva; na mesma serra nasce além deste o Rio Zêzere que vem passar distante da dita vila uma légua.



 Também nela pôs o Autor da natureza três eminentes penedos, a que chamam os Cântaros; é o do meio tão alto que do seu nascimento (da penha), custa a compreender o ponto em que acaba, com a vista; os outros dois causam a mesma admiração, pelo que respeita à sua formatura; nele se cria em abundância a erva chamada genciana, que os pastores pela sua brutalidade vão arrancar nas fráguas, com evidente perigo da sua vida, de que parece não fazem caso.
O firmamento das abas desta serra é uma terra safra e areenta, saibrosa, movediça, de sorte que só cria mato rasteiro, como giesta, urze, aroeira e outros semelhantes. Deste mato é que se costuma usar nas fábricas, para se aquentarem as caldeiras, por fazer labareda, que com brevidade fervem, em menos prejuízo das mesmas caldeiras, em que se gasta uma grande porção de cargas do mesmo mato em cada dia.
Também nas mesmas abas da serra se semeiam vários pedaços de terra fazendo suas roças, e queimadas de quatro em quatro anos, em que semeiam alguns alqueires de centeio.
Esta cultura que se faz na dita serra é de pouca utilidade e maior o prejuizo que faz às fábricas quando chove; porque como a terra se acha bolida e sem mato que a prenda, com as enchurradas, toda acode às ribeiras; e como os pisões trabalham em todo o tempo, esta mesma enchurrada, com a terra que traz, se introduz nos panos, e os corta, em prejuízo grande do mesmo lavor.
Têm mais o prejuízo as mesmas fábricas, que gastando continuadamente muito deste mato para o ministério das caldeiras, como fica dito, com a dita cultura, e queimadas que se fazem, já as mesmas experimentam grande falta, e lhes custa mais cara cada carga, por se ir buscar muito mais longe.
Faz mais prejuízo a dita cultura, em que como as ribeiras que descem da mesma serra, todas se metem no Rio Zêzere, e este, em Punhete no Rio Tejo, toda a areia que desce da mesma serra, se introduz nos campos de Santarém; e por isso se acham tão areados; e da mesma forma o mesmo Tejo de Punhete para baixo, em prejuízo da navegação tão necessária. Há vinte e cinco dias que agora tem chovido continuamente e sempre observei virem as ditas ribeiras turvas e cheias da mesma areia, sem que nunca cor­ressem claras, por causa da dita cultura.
A estes mesmos prejuízos atendeu já o Senhor Rei Dom Manuel, que escrevendo à Câmara da dita vila, no ano de 1532 (sic), a carta que consta da certidão junta, pela qual manda proibir a dita cultura, e que havendo pre­juízo de algum dos donos das testadas, se faça derrama pelos engenhos e se pague aos proprietários delas.
Porém parece que não deve ser assim; mas antes que se deve totalmente probir a dita cultura, atendendo-se aos graves prejuízos que se seguem; man­dando-se ordem ao juiz de fora da dita vila de que se informe quem são os proprietários, fazendo-lhes apresentar os títulos que tem das mesmas testa­das, que poderá ser sejam muitos intrusos; e achando que são legítimos, cada um dentro da sua demarcação plante castanheiros, aonde se dão sin­gulares; e desta sorte ficarão sem pensão os donos das fábricas, e mais engenhos úteis ao comum; e os proprietários das testadas percebendo o fruto todos os anos; o que na cultura da sementeira não tem senão de quatro em quatro e de cinco em cinco.
Com esta providência se evita o prejuizo dos panos nos pisões, a grande falta de lenha para os tintes, o grande prejuizo da navegação do Tejo, e campos de Santarém; e sem nenhum dos verdadeiros proprietários das testadas da serra.            .
Nesta vila há duas parcialidades de traficantes de panos; uns que são cristãos novos, e outros velhos: estes, mais verdadeiros, e por isso de menos cabedais e menos em número: aqueles, em mais número, e de maior cabedal, pelas falsidades e roubos que actualmente estão fazendo na manufactura, e lavor dos mesmos panos; de que tem resultado perderem-se os créditos das ditas fábricas, em utilidade dos estrangeiros pelo consumo das suas fazendas.
É certo que na dita vila e suas vizinhanças, só cuidam em como hão-de enganar e roubar uns aos outros; pois cada um no seu ministério cuida do modo mais subtil de o prejudicar. De sorte:
Que o creador quando quer tosquear, faz o seu terreiro, e sendo obrigado a borrifá-lo levemente, para que o pó se não introduza na lã; em lugar de o borrifar põem-no em lama; tosquia sobre ela; e como a lã é como esponja chupa toda a humidade; aqui acrescenta umas poucas de arrobas, além da lama que se introduz nos velos, quando os fazem: na véspera que hão-de tosquear levam as ovelhas a uma ribeira e nela as molham; depois metem-nas em um alqueive; entram a assobiar-lhes; as ovelhas ao som do assobio a correr; levantam uma grande poeira, que se lhe introduz na mesma lã; eis aqui outras poucas de arrobas que acrescem.
Vai o regatão por casa dos creadores a comprar a mesma lã; e depois de comprada entra a carregá-la, fazendo as cargas de 8 arrobas; e quando chega a povoado a vendê-la, tem dez, porque sempre vem a dormir ao pé de uma ribeira, e aí toma uma corda de esparto, amarrada uma ponta em uma pedra; bota esta no meio da ribeira, e a outra ponta, furadas as sacas, a passa por dentro delas; entra o esparto a chupar a água, e a introduzi-la na mesma lã, além de molharem as bocas das ditas sacas; e desta sorte fur­tam também seu par de arrobas, além das que furtam os creadores; e quem o sente são os traficantes dos panos, porque devendo deitar cada arroba, depois de lavada dezoito e dezanove arrateis em lugar destes não deitam (síc) senão 13, 14 e 15 arrateis o que não sucederia, se não houvera aqueles roubos
Estes se poderiam evitar quando Sua Magestade fosse servido mandar proibir que nenhuma pessoa de qualquer qualidade que fosse, não comprasse lã por casa dos creadores, mas antes estes a trouxessem a vender ao povoado, que lhe parecesse, fazendo-se exame ao pé da balança da sua qualidade, na ocasião da venda; e achando-se-lhe algum vicio feito por malicia, serem castigados com as penas, que o mesmo senhor fosse servido; porque com esta providência se evitam os ditos roubos, e enganos, feitos em um género, que deve ser tratado com lizura, pela utilidade, que dele se segue ao Reino, no lavor dos panos.
E porque umas vezes sobem as lãs muito de preço, em prejuízo dos fabricantes; e outras descem em prejuízo dos creadores, seria útil, que tivessem um preço certo, de sorte que nem subissem de 2$400, nem descessem de 2$000, preços muito convenientes, tanto para os creadores, como para os fabrican­tes, pelas informações que tirei, tanto de uns como de outros; e desta sorte se livrariam os conluios que cotidianamente se experimentam nas vendas e compras deste género.
Também seria conveniente mandar Sua Magestade proibir que os donos das ervagens não possam levantá-las do preço por que antigamente se costumavam vender; e que nenhuma pessoa possa fazer delas o monopólio para as tornar a vender, com as penas que o mesmo senhor for servido.
Furtam os carduçadores; porque tendo de cada vinte arrateis, oitenta reis, por fazerem muitos pesos carduçam mal; além da que furtam, meten­do-a em si na ocasião em que estão trabalhando.
Furtam os cardadores; porque tendo em cada arratel que cardam, trinta reis por cardarem muitos, cardam mal, além da lã que furtam quando estão cardando.
Furta a fiadeira; porque suposto leva a lã de casa do fabricante pesada, e a entrega também depois de fiada, por peso, sempre furta; porque põem a lã em parte húmida, enquanto a não fia; e depois de fiada, toma uma bochecha de água, e com uma palha na boca borrifa a maçaroca pelo buraco do fuso e desta sorte a humedece; e além do que furta às vezes, entrega mais do que recebe.
Furta o tecelão, porque suposto que recebe o fiado por peso, e entrega o pano também por peso, de sorte que sendo costume levar cada teia 30 arra­teis de urdir, vinte e oito para tecer, logo ao urdir furtam aquela porção de fiado, que a sua ideia lhe arbitra; e o mesmo ao tecer, por serem os fiados diferentes; e para os panos terem a mesma quantidade de côvados, que é costume ter cada pano, não o apertam no tear; e por isso fica mais falsi­ficado; e para satisfazerem o peso do roubo, quando o vão desenrolando no tear, o deixam ir caindo em uma cova, que sempre está húmida e com lixo; e pela qualidade da lã, recebe a humidade; e pelo azeitado da mesma lã, o lixo e poeira; de sorte, que supre com estas duas subtilezas, o que furta, e o que entrega de mais no peso do mesmo pano.
É certo que todos os presos de cadeia da dita vila, e outras muitas pes­soas, que na mesma fazem imensidade de meias e outras que também fazem seus panos, não compram outra lã, se não a que furtam os ditos obreiros.
Para se evitarem estes furtos tão prejudiciais ao bem público em um lavor que se deve tratar com verdade, tanto para crédito do mesmo, mas também para a perfeição das mesmas fábricas; só se pode conseguir mandando-se ordem ao conservador delas para que todos os anos tire uma rigo­rosa devassa das pessoas que fazem meias, e das de suspeita, que fazem panos, das lãs furtadas, e averiguar a quem as compraram; e achando que são dos referidos obreiros, castigue tanto aos vendedores como aos compradores por­que ambos concorrem para o mesmo furto.
Furta o traficante; porque devendo levar cada pano de quarenta côvados, trinta arrateis a urdir, e vinte e oito a tecer; dá só 28 para urdir e 25 para tecer; e desta sorte ficam os panos mais estreitos e com menos corpo; e quando vão à tentada, puxam-nos com tal jeito, que ficam com a mesma largura, como se levassem a conta por inteiro.
Furta o pisoeiro no mal que apisoa os panos, que sendo estes em enxerga, de 60 covados e devendo ficar em 40, apisoam tão mal por apisoarem muitos e outras vezes porque os traficantes lhe dizem que querem covados, e não importa a qualidade, ficam os mesmos panos de 44 e 45 cavados; e o mesmo sucede aos das perchas e tendas.
Pelo Regimento das Fábricas, é obrigado o cardador a denunciar o carduçador por não escarduçar bem; a fiadeira, ao cardador, porque não cardou bem; o tecelão à fiadeira porque não fiou como devia; o pisoeiro ao tecelão; o da percha ao pisoeiro; o da tenda a da percha; mas nada disto se faz porque todos estão cúmplices no mesmo erro.
Para se evitarem todas estas desordens se deve ordenar ao juiz vedor, que faça em tudo observar o Regimento com as penas nele estabelecidas como é obrigado; e que o Juiz Conservador que pelo mesmo Regimento são os Juizes de Fora da mesma vila, tire uma devassa todos os anos do mesmo Juiz Vedor, se faz, ou não a sua obrigação; se disfarça algum dos com­preendidos nos sobreditos erros; e que achando-o culpado, o castigue como lhe parecer justo, admitindo-o a livramento perante si, dando-lhe apelação para o Conselho da Fazenda, como juiz superior das mesmas fábricas.
(Continua)
Nota dos editores - As fotografias são da autoria de Miguel Nuno Peixoto de Carvalho Dias.

Estatística baseada na lista dos sentenciados na Inquisição publicada neste blogue:

Publicações neste blogue sobre os monografistas covilhanenses:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/03/covilha-memoralistas-ou-monografistas-xv.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2015/01/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/12/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/10/covilha-memoralistas-ou-monografistas-xi.html
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http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2014/05/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
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