domingo, 15 de setembro de 2013

Covilhã - Memoralistas ou Monografistas II

Retomamos hoje os monografistas da Covilhã, começando com algumas reflexões de Luiz Fernando Carvalho Dias já publicadas neste blogue. Em seguida iniciamos a apresentação da Memória da Covilhã de João Macedo Pereira Forjaz, já publicada por Carvalho Dias na sua obra: "História dos Lanifícios (1750-1834).(a)

“Convém enumerar os autores de monografias da Covilhã, os cabouqueiros da história local, aqueles de quem mais ou menos recebi o encargo de continuá-la, render-lhes homenagem pelo que registaram para o futuro, dos altos e baixos da Covilhã, das suas origens, das horas de glória e das lágrimas, dos feitos heróicos e de generosidade e até das misérias dos seus filhos, de tudo aquilo que constitui hoje o escrínio histórico deste organismo vivo que é a cidade, constituído actualmente por todos nós, como ontem foi pelos nossos avós e amanhã será pelos nossos filhos.” […]
[…] O século XIX abre com o trabalho do luso-brasileiro, oriundo da Covilhã, Dr. João António de Carvalho Rodrigues da Silva sobre a indústria dos lanifícios. Tivemos oportunidade de publicar uma segunda edição deste curioso estudo na revista “Lanifícios”, no ano de 1955 (b). Continua a série com a memória do Dr. João de Macedo Pereira Forjaz, bastante documentada.”(c)

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"Esta Memória da Covilhã e da sua indústria, da auto­ria de João Macedo Pereira Forjaz foi escrita para a Aca­demia Real das Ciências de Lisboa. Como instrue a notícia manuscrita que a antecede, subscrita pelo Dr. António Mendes Alçada de Morais, que no-la transmitiu, não está completa, embora o pareça, e o seu autor teria sido advogado, segundo a mesma fonte.
Cumpre esclarecer que não encontrámos, no fundo da Biblioteca da Academia das Ciências rasto desta Me­mória, pois não deve ter chegado a entrar na referida instituição; do autor também não achámos qualquer refe­rência no arquivo da Universidade de Coimbra; assim haverá, que rever a hipótese da profissão que lhe foi atri­buída. (1)
Devemos a gentileza desta cópia ao Dr. Luiz Filipe da Fonseca Morais Alçada.
O Dr. António Alçada, como era mais conhecido, nota­bilizou-se como advogado e jurista: escrevia elegantemente e deixou inéditos um livro de versos e um romance incom­pleto cujo enredo decorre na Roma dos Césares. Publicou além de várias minutas de recurso para os tribunais superiores, uma pequena Memória da Covilhã, sua terra natal, como representação da cidade, nos pri­meiros anos da república, destinada a conseguir uma pro­moção a capital de distrito.
Como seu tio, Dr. Valério Nunes de Morais, também o Dr. António Alçada foi jornalista de mérito.
No capítulo da sua actividade jornalística cabe referir não só alguns estudos de história da cidade, publicados na peugada do seu referido tio ou em colaboração com ele, mas também outros, que, sob o pseudónimo de Diogo Nu­nes, dedicou à divulgação dos progressos industriais, ins­pirado em revistas técnicas estrangeiras, o que representa uma contribuição meritória à formação técnica da cidade que lhe foi berço." (d)

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Este manuscrito é devido à pena do eminente advo­gado da vila da Covilhã, Dr. João de Macedo Pereira For­jaz, que o fez para concorrer como candidato à Academia Real das Ciências de Lisboa.
Não chegou a concluí-lo. Parece aliás, concluído.
Esta cópia foi textualmente extraída, sem nada alte­rar do manuscrito existente na biblioteca do Ex.o Se­nhor Dr. Manuel José Gonçalves dos Santos Gascão, con­servando-se a própria ortografia.
Esta cópia foi tirada em 1905 por António Mendes Alçada de Morais e pertence-lhe. (e)

Descrição Analítica e Económica da Notável vi1la da Covilhã, do seu antigo, e grande distrito, e da famigerada Serra d'Estrela, acompanhada de notas e peças justificativa.

CAPITULO I

Tendo Julio César concluído a conquista da Lusitania, pela célebre batalha dos Erminios, Silio, um dos seus mais principais capitães, fundou 41 anos antes de Cristo, a notável vila da Covilhã, dando-lhe o nome de Sília Erminia, ou Erminia; e chegando a ser municipio romano, e a lograr os creditos de dominar as povoações do seu dilatado distrito, subsistiu assim até o tempo do Imperador Nerva, que imperou em 91, em cujo tempo se diminuiu a sua antiga grandeza, por causa de uma grande peste que houve nesta vila, e assim permaneceu até a entrada dos Godos em Espanha.
Depois governando Ataces, primeiro rei dos Alanos, a dominou com a maior parte das terras da Lusitania, sempre com as mesmas proeminências.
Em 400, sendo rei de Espanha Witiza, penúltimo Rei dos Godos, a deu ao Conde D. Julião, em recompensa de serviços, e por ser casado com Fran­dina, irmã de Witiza, dos quais nasceu aquela celebrada Florinda, origem e perdição de Espanha, e do ultimo infeliz rei godo D. Rodrigo, apelidado portanto Julia Cava, ou Cava Ju1iani, hoje Covi1ham; e neste tempo foi destruida pelos mouros, e sujeita às suas desolações, pela sua entrada.
Em 718 do nascimento de Cristo estava dominada pelo mouro Aliboacem, a quem foi tomada pelo invicto D. Afonso Catolico, rei de Castela, com muitas outras terras, mas em grande diminuição da sua antiga grandeza.
A sua principal fundação, foi no plano de fundo da Serra de Estrela, sitio menos saudável, de que ainda há vestigios, como são os restos do convento velho de S. Francisco, junto da Igreja de S. Lazaro e esta mesma igreja.
Em 1027, no tempo do rei D. Femando de Espanha, denominado o Impe­rador, foi mudada a dita Vila para onde existe, que é nas faldas da dita Serra de Estrela, para a parte do Norte, sitio tão eminente como jocundo, e por isso mais saudavel (1).
No ano de ll86, diz Moreri, que D. Sancho 1º de Portugal a povoava novamente, a ampliava, e a circundara de muros, dando-lhe grandes privi­legios, em particular, que seus cavaleiros lograssem a preeminencia de infan­ções, e que qualquer escravo morador nela por um ano ficasse livre, e seus descendentes habilitados para todas as honras (2). O mesmo rei passado treze anos a deu a Raimundo Pais em premio de serviços, que lhe tinha feito, contando alem deste, e do conde D. Julião, dois unicos senhores, que foram o senhor rei D. Diniz e o infante D. Luiz (3).
Sendo, pois, esta vila tão antiga, o Cartorio da Camara não tem papeis anteriores ao Reinado do Senhor D. Diniz, verificando-se o mesmo nos mais cartorios, o que se pode atribuir a um grande levantamento da popu­laça que a1i houve em Novembro de 1637, em que arrombaram as portas, queimaram os papeis e livros do cartorio da mesma Camara. e de muitos outros (4). E por isto não existe o primeiro Foral, que 1he deu o senhor D. Sancho o 1º, nem mesmo o segundo, dado em Santarem pelo senhor rei D. Manuel, no primeiro de Junho de 1510, onde este senhor, rateficando o primeiro foral, determina fosse sempre aquela vila da coroa, e se não desse a pessoa a1guma particular, motivo porque não posso, como desejava, dar nesta minha memo­ria uma copia dos sobreditos Forais.

Foral Novo da Covilhã (f)
Arranjo gráfico do Prof. António E. Lopes (f)

CAPITULO II

Dos vizinhos que antigamente tinha a Covilhã, dos que hoje compreende, dos seus conventos, freguesias e capelas.

Nos tempos antigos, segundo afirmam alguns autores, compreendia a mencionada Vila, 1500 vizinhos, com 13 freguesias, dois conventos de frades, um de Sto Antonio, outros de S. Francisco, fundação dos padres Gualter e Zacarias, que o mesmo S. Francisco mandou a Espanha em 1217, e 360 lugares de jurisdição, e voto em Cortes (5).
O primeiro destes conventos está situado fora da Vila, num lugar elevado, e fronteiro à mesma; é hoje uma das melhores casas que tem a Provincia da Soledade, de quem é padroeiro S. A. R., pela aceitação que fez o Senhor D. João 5.º.
O segundo é mais antigo, por ser já convento no tempo da antiga Covilhã, donde foi mudado para onde existe em 1322, no Reinado de senhor D. Diniz, o que se evidencia de uma obra que se fez no dito convento em 1596 e constar duma inscrição que na mesma se encontrou, que havia mais de 274 anos, que se tinha fundado verificando-se também o mesmo, d'um pergaminho do arquivo do dito convento, feito no Reinado do sobredito senhor em 1321, aos sete de Maio em que os religiosos fizeram um escambo, com Martim Anes, que lhes deu a agua que nascia na sua caza, sita sobre o adro de S. Salvador.
Os 1500 vizinhos que os mesmos autores dizem compreendia esta Vila nos tempos antigos se reduzem hoje a 1.000, repartidos em 13 freguesias, que eles mencionam que são dez Priorados e duas vigararias, e um curato de Malta.

Padroado Real.

1ª - A freguesia de Sta Maria do Castelo, que compreende tudo o que está de muros adentro e consta de 300 fogos. Antigamente foi priorado, e hoje vigararia da Comenda da Ordem de Cristo, por ter sido igreja dos Templários (6).
2.a - A freguesia de S. Bartolomeu, que está tambem redusida a viga­raria por ser pertencente à Comenda da Ordem de Cristo, e em outros tempos tambem igreja dos Templarios.

Priorados do Padroado Real.

3º -A freguesia de S. Paulo (7).
4º - A freguesia de Stª Marinha.
5º - A freguesia de S. Vicente.

Priorados apresentados pelo Bispo da Guarda.

6º - A freguesia de Santa Maria Madalena, de que foram em outros tempos padroeiros os Tavares da Covilhã.
7º - A freguesia de S. Tiago. (8).
8º -A freguesia de S. Silvestre, que foi fundada, dotada e apresentada, assim como a de Stª Maria de Peraboa., do termo da mesma Vila, pela casa dos Macedos Feos da Covilhã, sendo o ultimo parroco da sua apresen­tação, na primeira, André Feo de Castelo branco, como consta dos Livros da Camara Eclesiastica da Guarda, de autenticos documentos que se acham em poder do seu descendente João de Macedo Pereira da Guerra Forjaz, da dita Vila, Fidalgo cavaleiro da Casa de S. Mag.e I. e R. padroeiro do Priorado de S. Lourenço da dita Vila, com apresentação do mesmo priorado, e socio da Real Academia das Ciencias de Lisboa, Administrador da mencionada casa e seus morgados, e da de Monforte da Beira (9), e se manifesta tambem do epitafio da sepultura do dito prior, na Igreja de S. Pedro da mesma Vila, onde tem as suas armas, e as mesmas na Capela de S. Gonçalo, que está na referida Igreja, pertencente aos ditos primeiros morgados, a cujo administra­dor pertence sem duvida a apresentação daquelas Igrejas por ser o seu legi­timo padroeiro.
9º - A freguesia de S. Salvador.
10º - A freguesia de S. Martinho.
11º - A freguesia de S. Pedro, que é priorado apresentado pelo cabido da Guarda.
12º - A freguesia de S. João de Martir in collo, priorado apresentado pelo prior dos Conegos Regrantes do Colegio novo de Coimbra.
13º - A freguesia de S. João de Malta, que é curato, apresentado pelo Comendador da Comenda.

Tinha mais a mesma Vila, nos tempos antigos tres paroquias; a 1ª de S. Miguel (10) reduzida hoje a Beneficio simples, de colação ordinaria, por não ter fregueses. 2 ª a de S. Lourenço de quem hoje é padroeiro o Dr. João de Macedo Pereira da Guerra Forjaz, tambem não tem fregueses, e por isso está reduzida, assim como a sobredita, a Beneficio simples, de co1ação ordi­naria, a qual foi ultimamente apresentada, pelo mencionado padroeiro, no Revº.do Joaquim Pedro Pelote, do lugar de Monforte, que foi colado em 22 de Agosto de 1815. 3 ª A de Stº André, que nos tempos antigos era parroquia das principais daquela Vila e hoje está de todo extinta, tendo-se portanto aplicado os seus rendimentos à Igreja do lugar da Boudobra, pouco distante da mesma Vila, que pertence às Freiras de Lorvão da ordem de S. Bernardo.
Alem destas igrejas, tem esta Vila duas capelas na freguesia de Stª Maria, uma particular, a que chamam de Stº Agostinho, pertencente às casas que foram dos antigos Teles e Esas, daquela Vila, progenitores do dito João de Macedo Pereira da Guerra Forjaz, os quaes tiveram couto para omeziados, até ao ano de 1691, como consta dos Livros da Camara da mesma Vila, em cujo ano foram proibidos pelo senhor Rei D. Pedro 2º  (13 de Setembro de 1691. Nota do Dr. Valerio Nunes de Morais).
A outra da Senhora do Rosario, a qual já era capela com irmandade em 1580, o que consta de uma doação que fez a esta Senhora Pedro Pacheco e sua mulher Izabel de Abreu, duns assentos de casas, com a sua pedraria e 60 000 reis para a obra da dita capela, e caso que se fizesse o mosteiro de freiras, que se intentava fazer nelas, lhe doavam tambem as casas em que viviam, com seus quintais (11).

Tem tambem seis ermidas fora da Vila, a:
1 ª de Stª Cruz, de que já falámos, que tem uma grande e rica irmandade.
2 ª A de S. Sebastião.
3º A do Bom Jesus, todas para a parte da Serra.
4º A de S. Lazaro (12) de que já tambem falámos, que está demolida, e foi antigamente Hospital de Leprozos; jaz ao fundo da Serra, e como já se disse onde foi a antiga Covilhã; o seu tombo foi renovado, sendo Juiz de Fora da dita Vila Rui Caldeira, em 7 de Novembro de 1500; consta dele, entre muitas fazendas que tem, a que transcrevo, para demonstração e prova do sitio e lugar da antiga vila:
«Um serrado grande de olival, junto com a dita gafaria, serrado ao redor com paredes, que parte pelo caminho que vem da Vila, por diante da parte do serrado de S. Francisco do Convento Velho, pelo rego da agua, até ao caminho da Dorna, que vem da mesma vila, e daí, com uma propriedade do Prior de S. Tiago, e dai a cerrar com um caminho que vem da Vila por S. Francisco o velho paga de foro 47 riaes.» 
5º A do Senhor da Ribeira, que foi em outro tempo mui:frequentada de Romeiros da Vila e termo.
A Igreja da Mizericordia é uma das melhores que ha na Covilhã; tem hospital unido à mesma Igreja, com sua Casa de Despacho, onde tem todos os titulos e Livros precisos para a sua boa administração; mas o hospital não está bem construído, e o 1ugar é improprio para ele; os doenttes são mal tratados, e sem o conveniente aceio, não obstante ter a mesma Miseri­cordia quatro mil cruzados de renda, que é constituida em foros, e juros de dinheiro; tem capelão e hospitaleiro, a quem pagam das mesmas rendas; tem uma grande Irmandade, que teve principio no reinado do Senhor D. João 2.°, e é de protecção Real.
Antigamente, nos tempos que temos falado, teve esta Vila Gueto ou Judia­ria, que estava no meio da mesma Vila, e tinha dez portas, que vinham para a Cristandade, e algumas sobre os adros das igrejas, do que se seguiram graves inconvenientes, contrarios ao serviço de Deus, mandou, por tanto, o Senhor D. Afonso 5º em 1468 ao ouvidor da Comarca, que fosse logo à dita vila e que mandasse fechar as ditas portas, principalmente as que estavam sobre os adros e as que lhe parecessem mais escusadas, e desnecessa­rias, e que não deixasse mais de cinco para serventia do referido lugar, o que assim se praticou, evitando-se deste modo os perpetrados delitos.
À vista, pois, do que temos exposto, e dos bons ares desta Vila parece deveria ser bastante saudável mas não é assim, porque grassam repetidas vezes podres, e outras queixas semellhantes, o que procede, sem duvida, do pouco asseio que tem nas casas, com o trato da lã, e do mau cheiro desta, da pouca limpeza dos mesmos operarios, porque muitos deles poucas vezes mudam de vestido, e ainda das ruas, que nunca são limpas, dos cheiros das tintas, e sobretudo do mau alimento de que ordinariamente se nutrem, porque as sardinhas, e ruim carne, e o ordinario manjar destas gentes, e por isso seria para desejar se ve1asse mais na saude de um povo, que é e podia ser muito mais util ao Reino e conquistas.
Tem esta vila em si muitas e boas fontes, e tambem agua que lhe vem encanada da Serra, com que regam os quintais, e poderia ser mais, se se fizesse uma grande obra, que há anos se projectou, que era meter toda a agua das sete fontes na dita vila, para o que faltavam já bem poucos canos; concluida esta obra, teriam todos os quintais, e ainda os olivais ime­diatos a agua necessaria, e seriam lavados das ruas as imundicies que infeccionam o ar, purificando - o dos miasmas, que tanto prejudicam a saude dos moradores da mencionada Vila e haveria mais vegetais com que se pudessem alimentar aqueles, que poucas vezes os usam, o que tambem concorre para as sobreditas molestias, e por conseguinte para o da população.

CAPÍTULO III

Das fábricas da sobredita Vila e o modo de melhorá-las.

Em razão da grande abundância de águas, que tem esta Vila e das duas grandes ribeiras que a circundam, em que também há muitas azenhas e moí­nhos de moer centeio, trigo e milho se tem conservado sempre nela uma grande fábrica de panos, baetas e outras drogas, sendo em todo o tempo a melhor do Reino de sorte que em 1573 o Senhor Rei D. Sebastião (13) mandou fazer na mesma vila os padrões para se repartirem por Portalegre, Estremoz e mais fábricas do reino, e que se posessem na Câmara as certi­dões em boa guarda, que lhe mandassem das mesmas fábricas, sobre a entrega dos ditos padrões, como consta do Capítulo 8º do Regimento dos Panos, que se aditou em 1690, e assim sempre esta Fábrica foi a principal do Reino.
O Conde da Ericeira passou uma ordem, no idioma inglês, a qual tra­duziu em vulgar Frei Patricio de S. Tomas, em cuja ordem mandava, que os ingleses que estavam trabalhando na Covilhã, nas fábricas dos panos finos, que não tirassem os salários, no tempo do contrato, mas também depois, e que ensinassem os naturais que quisessem aprender, o que tudo determina em seu nome, e de S. A. em 28 de Novembro de 1673. Esta ordem registada a fls 3 do Livro dos Registos de 1677 (14).
O Senhor D. José de gloriosa memória, mandou fazer em 1761 o grande edifício que hoje se admira, para a nova fábrica, que fez estabelecer na mesma Vila, enriquecendo-a de todos os trastes precisos, para se manufacturarem e tingirem toda a qualidade dos panos, criando logo o lugar de Conservador, e Deputados, para a sua administração, dirigindo-lhes pelo seu Ministro e Secretário de Estado a Carta seguinte:
Vozes da Carta
«Procurando a Junta do Comércio deste Reinos e seus domínios, o aumento e perfeição das fábricas neles estabelecidas, ajustou com aprovação de S. Magestade, a benefício das manufacturas, e teares dessa Vila, um mestre tintureiro, um tosador, e um prensador, um tecelão de panos, e baetas, e outro de saetas e serafinas, e outras drogas, todos três de nação inglesa, na bem fundada esperança de que com esta nova forma de manu­facturas, se haja de conseguir a pretendida perfeição: mas como poderá haver suas contradições e desvios, a que a sobredita Junta não poderá ocorrer com as providências precisas, sem que lhe seja presente toda a dúvida que houver.
É o mesmo Senhor servido que a Junta da Administracão comunique à do Comércio destes Reinos e seus domínios todas as novidades que ocorressem sobre esta matéria, a fim de que se observem, e possam conc1uir as disposições que se tem principiado a favor da utilidade pública ao dito respeito.
      Deus guarde V. Mercês.
      N. Senhora da Ajuda a 29 de Julho de 1761.

Senhor Juiz Conservador e Deputados da Junta da Administração da Fábrica dos Panos da Covilhã e seu termo.
Conde de Oeiras»

Para cujo fim se passaram quatro provimentos: um para Bernardo Rodrigues, espanhol, mestre tintureiro de baetas panos e cousas de lã, com 800 reis por dia, e pelos aprendizes que ensinar 48.000 reis.
Outro para Jorge Dixar, inglês, mestre tozador, e prensor de panos, baetas e outras cousas de lã, com 600 reis por dia, e pelos aprendizes que ensinar 36.000 reis.
Outro para Henrique Benford, mestre tece1ão, inglês, para panos e baetas com 600 reis por dia, e pelos aprendizes que ensinar 36.000 reis.
Outro para Tomas Cerd, inglês, mestre tecelão de serafinas, saetas e outras drogas, com 300 reis por dia, e pelos aprendizes que ensinar 30.000 reis, mas isto depois de ensinados, tendo também o lucro que ajustassem com os fabricantes de panos.
Chegando, pois, esta fábrica a um grande auge, se viu inteiramente decadente, logo que passou a ser administrada por conta dos arrematantes, estado em que será forçoso continue, enquanto S. A. R. a não fizer administrar por sua conta, assim como o fardamento das tropas, porque só então se poderá ocorrer às causas, que motivam a sua decadência e dos fabricantes de panos da dita Vila, e artistas da mesma; fazendo-se também escolha de uns Administradores de probidade, que tenham em que subsistir e, que não sejam como até agora, mercenários; e de um Juiz Conservador rico, sábio e recto se lhes não una, fazendo em tudo o seu dever; mandando-se vir mestres da Inglaterra ou doutros países que acabem de ensinar o modo de fazer panos, baetões, etc. em tudo semelhantes aos da mesma Inglaterra, o que até agora não tem podido executar (15).
Concorreria também muito para aumento das fábricas das mencionadas Vilas, e de todo o Reino, o levar os seus tintes à última perfeição, para o que cumpre fomentar o estudo da química, com as suas competentes escolas e laboratórios, nos mesmos lugares das Fábricas porque sem este estudo, que indispensávelmente se deverá exigir dos aprendizes, jamais se chegará ao desejado fim.
O curso de Lameri, traduzido por Palácios, não é bastante; mais com­pletos são os de Maker, e Baume; o escritor deste tratado publicou em Paris um curso químico técnico e prático, em três tomos, em 8.°, e é também autor do Dicionário Quimico, porque se faz bem recomendável, e digno de estima.
Tais são, sem dúvida os únicos remédios, que se podem e devem aplicar ao amortecimento das Reais Fábricas da Covilhã, Fundão e Portalegre, porque de contrário irão sempre em decadêncila, a tropa não vestirá um bom pano, o fabricante e artista desanimarão, à vista dos grandes monopólios e extorsões de todo o género, que até agora se tem praticado e sairão para fora do Reino muitos milhões, que repartidos no mesmo, farão prosperar o Estado, o Comércio interior e exterior, a mesma agricultura, e por conse­quência a população, sem que nos vejamos precisados a ir mendigar o vestido, e sustentar a outros países que não seja o nosso.
As fábricas particulares se acham no mesmo estado, porque além da penosa catástrofe da guerra, como não têm estimulo, nem são capazes de novas operações, têm sempre seguido servilmente o que viram praticar, e por ísso enquanto a parte principal estiver enferma, o corpo forçosamente há-de padecer. (16)
No Juizo da Conservatória da mesma Vila se tem estabelecido muitos bons regulamentos para acautelar desde o primeiro até ao último artísta, e mesmo os criadores de gado, de todo o roubo e fraude que possa praticar, mas com tudo isto, se praticam incessantemente, porque não há cousa em que se possa furtar tanto, como na lã. (17).

Notas:
1) Veja-se sobre o expendido o autor antigo, intitulado Antiga poblacion d'España que assevera o mesmo que acabamos de expor.
2) Estes privilégios, foros, escritos, uzos, e costumes foram depois confirmados pelo senhor rei D. Diniz, quando esteve na dita vila, deixando na mesma uma carta em que dizia que os juizes e concelho da mesma Vila lhe derão carne, pão, vinho, e outras cousas mais, não por foro, nem por serviço; e lhes deu esta carta, para que os Reis seus sucessores, o não tivessem por tal, foi feita, como consta do cartorio da Camara da sobredita Vila, em 22 de Dezembro de 1319. O senhor rei D. Manuel em 1497, estando em Evora, man­dou que se observassem estes Privi1egios, e lhos confirmou e uma sentença dada em Vizeu sobre a mesma materia em 1453.
Pelo senhor infante D. Henrique foram também confirmados estes privilegios, o que fez igualmente Filipe 1º em 1580. Consta tudo como já disse, do mencionado Cartorio.
3) Este infante que foi filho do senhor rei D. Manuel, assistiu na Covilhã, e lhe deu para credito seu uma magnifica porção do S. Lenho, que tem quase um palmo, que pelo roubo, que se fez desta preciosa relíquia, na Capela de St.a Cruz, onde estava, e depois pela sua milagrosa aparição, que se vert­ficou entre uns matos, junto do Rio Zezere, em 1548, e por outras maravilhas mais, constantes na referida Vila, se venera como verdadeiro na Igreja de St.a Maria da mesma Vila, para onde depois do roubo, foi conduzida, com toda a solenidade, tendo ali sacrario separado, na Capela do Sacramento, com varias chaves, para se evitarem novos roubos, a que se abalançou depois do primeiro, um cura da referida Igreja, cujas chaves costumam ter o parroco, magistrados e outras pessoas condecoradas. Tem uma grande e rica Irmandade, composta somente de moços solteiros, os quais lhe fazem todos os anos uma grande festa, com todas as solenidades, e no dia de Sta Cruz de Maio se faz procissão com a mesma reliquia, que vai de manhã a Sta Cruz, e em recolhendo se dá de tarde a beijar a todas as pessoas que teem essa devoção.
4) Este levantamento procedeu, de não quererem pagar a imposição, para a restauração do Brazil, a qual se mandou assentar a quarta parte no Real d'Agua e Cabeção da Siza. Filipe 3.°, em 1638 perdoou a todos, menos aos cabeças de motim. Este perdão está registado no Livro da Camara, que serviu em 1636 em diante.
5) Veja-se Duarte Nunes, Descrição de Port. Cap 2.; Oliveira. Cap. 2. Das Grandezas de Lisboa; Brito Liv. 6. Cap. 3.
6) A obra desta igreja foi mandada principiar pelo Bispo da Guarda D. Cristovão, e tendo depois obrigado os fregueses para findá-la, eles se opuseram a isto com um agravo, em que foram providos na Relação do Porto, em 7 de Fevereiro de 1587. Tambem nos tempos antigos, como se verá adiante, se julgavam os pleitos no adro desta igreja, pelos juizes e homens bons da terra, com mais brevidade, e sem as trapassas ordinárias que parece serem mais en­démicas naquela Vila.
7) Os parrocos desta Igreja tiveram em outros tempos grandes duvidas e contendas sobre dizimos, como foi em 1513, com o prior do Fundão, Lopo Tavares que apresentou uma sentença muito antiga em pergaminho e selada com selo de cera, a qual continha obrigar o prior de S. Paulo, para que não levasse o dizimo dos gados que pastassem nos limites de muitas Igrejas, e para dar a razão porque os levava. O prior de S. Paulo mostrou algumas sentenças antigas, por onde se via estar neste costume; uma do Bispo da Guarda D. Este­vam: esta sentença dizia, que vista a pobreza e pouca renda da Igreja de S. Paulo, para nela se celebrarem os ofícios divinos, lhe dava, limitava e anexava os dizimos dos bens do mosteiro de Stª Cruz, que estão na Covilhã; os bens e herdades que Mem Pires, sua mulher Maria Fernandes e seu filho Gonçalo Mendes de Trancozo, tinham na Covllhã, os dizimos do lugar de Pombal, alem do Zezere, e Cazal do Telhal. Deu-lhe tambem o que a Ordem do Templo tinha na Covilhã e termo, e as rendas e dizimos dos gados montezinhos, fora do termo da sobredita vila, com suas tenças e frutos; e os dizimas das soldadas dos pastores das ditos gados; os dizímos do lugar de Favais; os dizimos de Estevão Giraldes e de Durando Migueis, e de suas mulheres que teem em Favais, alem do Rio. A estes parrocos se opuseram como autores o prior de Stª  Maria Pedro Fernandes; o de S. Bartolomeu Mem Rodrigues; o de S. Pedro, Pero Gonçalves; o de S. Tiago, Diogo Gonçalves; o de St.a Marinha, Fernão Afonso; o de S. Silvestre, Rui Feo, e o de S. Salvador, Alvaro Martins. Tornou, portanto, o prior de S. Paulo a apresentar ao Bispo da Guarda muitas outras sentenças dos Bispos D. Vasco; duas de D. Gonçalo; a primeira dada em 1628, a segunda em 1637; duas de D. Luiz, a primeira proferida em 1445, a segunda em 1454; uma julgada pelo prior de Stª Maria Madalena e Arcipreste da mesma Vila Rodrigo Afonso, sendo Bispo o dito D. Vasco, contra Pedro Lourenço, prior de S. João Martir in collo, dada em 27 de Maio de 1426, e sete dadas por outros arciprestes em 1414, 1438 e 1448, à vista das quais foi proferida sentença na Guarda a favor do prior de S. Paulo, em 16 de Abril de l466.
8) No dia deste santo se faz uma grande feira na Covilhã, graça que lhe concedeu o senhor D. João 1º, e que fosse franca, e durou 20 dias, dez antes do dia do santo, e dez depois, com os privilegias e franquezas, que tem a feira de Trancozo.
Em 1429, a requerimento da dita Vila, foi mudada pelo Senhor D. João 2º para o dia de S. Francisco o que não teve efeito, porque continuou sempre no dia de S. Tiago. Consta tudo do Cartorio da Camara da referida Vila.
9) Estes morgados foram confirmados pelo Senhor D. José 1º de gloriosa memoria, e pela Rainha N. Senhora, por se mostrar ser esta família uma das mais distintas da Provincia, e um dos Ramos da Caza de Vimiozo, e Vila Nova, como se vê dos Régios Diplomas de 31 de Julho de 1776; e de 13 de Fevereiro de 1789, que constam do Livro do Registo das Provedorias da Guarda e Caste­lo Branco a 1ª a fls 10, e a 2ª a fl 24.
10) No dia deste Santo havia uma grande feira, uma legua distante da dita Vila; hoje se faz no lugar do Tortuzendo, para onde se mudou há anos, pelas dezordens que havia naquele sítio.
11) Em 1601 se intentou fazer o dito mosteiro para o que nomeou a Camara, e nobreza daquela Vila, para correr com a obra, Simão da Silva de Serpa, o qual no mesmo ano tomou posse dos bens doados. Em 1611, achan­do-se na dita Vila o Bispo da Guarda D. Afonso Furtado de Mendonça lhe suplicaram os nobres da mesma, lhes auxiliasse os seus projectos, dando-lhes alguma cousa para o dito convento; o que ele fez prometendo para a obra, por tempo de dez anos cem cruzados (!) o que consta do alvará por ele assi­nado, e selado com as suas armas, mas esta obra nunca se fez.
12) No dia de S. Lazaro se fazia uma boa feira junto da sua Capela; hoje se faz no Pelourinho da dita Vila.
13) Este senhor foi o que fez Notável a vila da Covilhã, em 1570, confir­mada em 1637 o que consta do Cartóro da Câmara da dita Vila.
14) Veja-se nas Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, tom. 3º, pág. 74, a Memória sobre o Estado Actual da Agricultura e Comércio do Alto Douro, e se ficará convencido da verdade exposta.
15) Arte de Fabricar Panos por Duhumel, se faz bem recomendável, pela importância do assunto, e pelo seu método, precisão e clareza; e não obstante ser dirigida à fabricação dos panos finos, como o principal da mesma, é comum para todos, se deve recomendar muito este belo Discurso aos fabricantes. Ele trata da eleição que se deve fazer das lãs e das várias qualidades destas, porque a perfeição do pano depende das lãs, que formam sua contextura. Este mesmo autor demonstrou os meios de conhecer as boas lãs, por sua inspecção, pela tacto, pelo cheiro, e a sua diferente qualidade segundo a. parte do corpo da ove­lha a que corresponde. Também indica as operações que se hão-de praticar com a lã, desde que é lavada, até que entra no tear; e depois de indicar tudo o que pertence a este oficio, e precauções que deve haver sobre ele, trata do pizão e do mais que se faz indispensável, para o pano ficar completo. E por fim se acha neste Tratado um Diccionário das palavras técnicas da Arte com 15 lâminas que explicam tudo o que expõem. Esta Arte devia ser traduzida em vulgar e não haver fabricante que a não tivesse, e os outros livros que indicamos para a. tinturaria.
16) A raridade e o gosto, diz Campomanes, é o que sustém as fábricas. Seguir uma prática cega necessàriamente faz dispensar os géneros, que carecem de invenção e novidade. O mesmo autor, no seu Apêndice à Educação Popular parto 4ª, pág. 357, ensina o modo de restabelecer as Fábricas perdidas quando diz:
«O fim dos Erários é conservar em seu cabedal o de todos.
Achando os fabricantes nos Erários o socorro do dinheiro, para comprar e custear os materiais, num instante se povoam as Artes que se acham destruídas. Tomando os Erários por sua conta o consumo, e a venda das Fábricas; achando-se pago com elas do principal e réditos, e tor­nando a dar-lhe mais dinheiro para que fabriquem, quem poderá duvidar de que este é o único e principal meio de restaurar o comércio, a povoação, alcavalas, milhões, e as mais rendas Reais, públicas e particulares?»
17) Veja-se sobre esta matéria Campomanes, no seu Apêndice à Educação Popular part. 2. pág. 204, em diante, e se verá verificada a nossa asserção.
(Continua)

Notas dos editores - a) "História dos Lanifícios": os volumes IV-V e VI, em número reduzido, estão agora encadernados e podem ser adquiridos através de peixoto.c.dias@hotmail.com. Encontram-se ainda disponíveis alguns exemplares dos três primeiros volumes da obra.
b)Revista que era propriedade da FNIL - Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios. Também já publicámos sobre a obra de Rodrigues da Silva no nosso blogue:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/08/covilha-contributos-para-sua-historia.html
c) Publicação neste blogue em 29 de Maio de 2011:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/05/covilha-memoralistas-ou-monografistas.html
d) Texto da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias.
e) Texto da autoria de António Mendes Alçada de Morais.
f)As imagens foram extraídas da obra de Luiz Fernando Carvalho Diaz, "Forais Manuelinos do Reino de Portugal e do Algarve", volume Beira.
1) Encontrámos posteriormente no espólio de Carvalho Dias as seguintes referências a cargos desempenhados por João de Macedo Pereira da Guerra Forjaz de Gusmão, que denotam não haver sido formado em Direito:
Vedor dos Panos da Fábrica da Covilhã - alvará de 23/10/1804, Livº 73, fls. 148 da Chancelaria de D. Maria I;
Escrivão do Geral da Vila da Covilhã, alvará de 07/01/1806, Lº 76, fls. 143, da Chancelaria de D. Maria I;
Repartidor dos Órfãos da Vila da Covilhã, alvará de mercê 07/01/1806, Lº 74, fls. 259 vº e alvará de propriedade do mesmo, da mesma data, Lº 76, fls. 143 da mesma Chancelaria, cargo que renunciou em 23/10/1813, Lº 16, fls. 122  da Chancelaria de D. João VI.



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