quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Covilhã - Inquéritos à Indústria dos Lanifícios XXI-XIX

Inquérito Social XIX
    
   Continuamos a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.

Capítulo X

FAMÍLIA

            Ao iniciarmos este capítulo onde se vai dizer alguma coisa da família dos operários da indústria de lanifícios, trememos de receio por não podermos talvez retratá-la conforme ela é. Várias razões contribuiram para que este estudo não pudesse deixar de ser algo deficiente: o pouco contacto com os operários de certas regiões, o reduzido tempo que restava depois do preenchimento dos boletins, a impossibilidade de visitar outros centros, a pressa exigida em todos estes serviços, quando, afinal, este trabalho exigia sobretudo observação e tempo.
            Muitos dos boletins foram preenchidos por terceiras pessoas, com critérios diferentes, ou sem nenhum critério, deficiência esta que teve projecção no elaborar das estatísticas e na certeza destas. Apesar de todas estas circunstâncias que talvez por excesso de sinceridade somos levados a acentuar, vamos procurar dar a este capítulo todo o interesse que ele merece.
            Da família, do seu estado moral, social e económico se há-de ter conta, sempre que houver que estudar-se um aglomerado humano nas suas múltiplas relações com o trabalho, com a política, com a religião. Por isso, ao estudar a indústria de lanifícios havemos de contar também com a situação da família dos seus operários. A base da família é o casamento; um dos seus fins essenciais, se não o maior de todos é a procriação dos filhos e a sua educação.
            Três grupos de organização familiar encontrámos no decorrer deste inquérito: a família com caracteres mais ou menos patriarcais, de tipo clássico, com poder paternal acentuado, com bastantes filhos, e com respeito pela tradição; a família desorganizada, segundo um tipo individualista, com poder paternal diminuído, com a precoce independência económica dos filhos que, desde muito novos, pagam o seu sustento e se vestem por si, que abandonam muitas vezes a casa paterna, fugindo à vigilância e poder dos pais, tipo de família onde se nota um afrouxamento nos laços familiares; um tipo intermédio de família.
            O primeiro tipo encontra-se naquelas povoações essencialmente rurais que concorrem aos lanifícios; o segundo, nas populações já industrializadas dos grandes centros; o  terceiro, um tipo intermédio onde predomina uma ou outra das tendências, conforme maior ou menor industrialização do centro, conforme o menor ou maior intercâmbio das populações rurais com a cidade.
            Paul Descamps, na sua admirável obra de inquiridor social, acentuou estes dois tipos que nós perfilhámos para caracterizar a população dos lanifícios, pois verificámos inteiramente a sua existência através deste inquérito.

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            Vamos começar por distiguir os operários através do seu estado civil. Fazemos ao mesmo tempo a diferenciação entre casados católica e civilmente e os casados somente pelo registo civil, porque julgamos essencial esta distinção: o casamento católico está implicitamente reconhecido pelo Estado ao exigir que ele se realize somente depois do acto civil; (1) o casamento católico dá geralmente uma nota de moralidade e de tradição entre nós, que não é justo esquecê-lo ao tratar deste acto, base da família.
            Nos 7.856 operários masculinos considerados na estatística deste inquérito, 1.536 são menores de 18 anos, por conseguinte, presumem-se não casados. Restam, portanto, 6.320 maiores de 18 anos, dos quais 3.462 são casados pela igreja e pelo civil, e têm filhos; 648 são também casados pelo civil e pela igreja, mas não têm filhos; casados só pelo civil e com filhos são 101 e sem filhos 45; 164 são viúvos com filhos, e 27 sem filhos; 104 em união de facto com filhos e 50 sem filhos; 4 separados com filhos e 1 sem filhos; 4 divorciados com filhos e 2 sem filhos; 19 solteiros com filhos, que não estão em união de facto. Solteiros sem filhos, com mais de 18 anos são 1.689.
            A mesma distinção vamos fazer agora com referência às mulheres que trabalham na indústria de lanifícios: são elas 5.007, das quais 712, porque são menores de 18 anos, não entram na estatística dos casados, porque se presumem solteiras. Ficam, portanto, 4.295 com mais de 18 anos. Destas são casadas pela igreja e pelo civil 844 com filhos e 334 sem filhos; só pelo civil 228 com filhos e 88 sem filhos; viúvas com filhos 309 e sem filhos 64; em união de facto 168 com filhos e 64 sem filhos; separadas com filhos 20 e sem filhos 14; divorciadas com filhos 13 e sem filhos 3; solteiras, com filhos, sem viverem em união de facto, 188; solteiras, com mais de 18 anos, sem filhos, são 1.958.

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            Segue-se a discriminação por grémios, do estado civil dos operários:


         Distribuídos os operários segundo o seu estado civil, aparecem na estatística acima, divididos por grémios, por sexos e conforme têm ou não têm filhos. Os operários casados, sem filhos, voltarão a aparecer depois numa estatística separada, em que se atende à sua idade, com o fim de se poder calcular aproximadamente o número daqueles que não têm filhos pelo facto de se terem casado há pouco tempo.
           Na estatística que acabamos de transcrever, verifica-se que em todos os grémios, salvo no do Sul, poucos são aqueles operários que não estão casados segundo o costume nacional. Também com a mesma restrição do grémio do Sul é pequena a percentagem dos “amancebados”, juntos ou em união de facto. No grémio do Sul o estado de mancebia alastrou sobretudo em Lisboa e arredores.
            As causas deste excesso de amancebados e de casados pelo civil, que coloca o grémio do Sul em situação diferente da dos outros grémios, parecem-nos ser as seguintes: influência da vida das grandes cidades de que Lisboa é caso único em Portugal; falta de contacto das massas com as forças espirituais; abandono por parte do clero; pouca submissão ao costume pelo facto de serem mínimos os laços de vizinhança; declínio da moralidade pelo afrouxamento da repressão social e desconhecimento das pessoas; dificuldades de vida sobretudo entre as mulheres, que sendo criadas de servir, se desempregam e procuram depois no meio fabril, maneira de se manterem, cuja moral é um pouco relaxada. Este grupo de mulheres que dão uma grande percentagem de mão-de-obra às fábricas da capital, na impossibilidade de se casarem, submetem-se a um género de vida conjugal, sem garantias, como é este da mancebia. A descristianização crescente das massas, com origem, por exemplo, nos efeitos ainda acentuados da propaganda republicana, é uma das razões a acrescentar a essa deficiente moralidade verificada no sector industrial da capital.
            Era vulgar, durante a fase das inquirições, ouvir explicar aos amancebados/em união de facto a razão da sua mancebia: justificavam-na dizendo que o casamento não era costume no tempo em que se juntaram. E, no seu raciocínio simples não deixavam de ter razão. Negado o formalismo religioso, substituído por um acto civil que o povo não estava em maré de compreender, escarnecido o carácter transcendente da instituição matrimonial, diminuída a sua perpetuídade através do divórcio, ao qual bastava como fundamento um mútuo consenso, para quê gastar dinheiro com o Registo Civil? Toda e qualquer razão de ordem administrativa que o justificasse, o povo não a compreenderia senão como medida fiscal.
         Entre estes amancebados de Lisboa muitos há que no seu contrato de mancebia respeitaram a moral natural: a sua família é numerosa e tem vinte e cinco a trinta anos de viver conjugal. Parece isto demonstrar que houve seriedade no contrato de mancebia e, por isso, talvez não devam ser tratados como aqueles aventureiros que abusando de uma situação de fraqueza, estão sempre à espera da primeira altura para romperem os deveres assumidos à face da lei natural.
            Entre os casados só pelo civil, predominam aqueles que anterior casamento religioso impede de legalizar também, à face da igreja, o seu matrimónio e, também, um grupo numeroso de indiferentes que confessam que, se vivessem na terra, não deixariam de estar casados pela igreja.
            A mancebia, repetimos, deve ser olhada pois como aquela situação conjugal em que os laços são mais frouxos, e a garantia da mulher e dos filhos é menor. Modernas influências se fazem sentir a favor desta forma de união conjugal. A sua influência porém, salvo em Lisboa e arredores, não resiste ao costume nacional, à religiosidade do povo, ao sentimento cristão que ainda perdura entre nós. A proporção dos divorciados e dos separados é quase nula como o demonstram os números. 
            Na rubrica “solteiros com filhos” incluíram-se aqueles operários que viveram amancebados e que presentemente o não estão; aqueles que sendo solteiros reconheceram os filhos; aquelas operárias que em tempos viveram amancebadas e não o são presentemente; aquelas que tiveram filhos, sem contudo viverem permanentemente em estado conjugal.
            Dizem-nos os mapas publicados que o grémio do Sul é aquele onde as raparigas solteiras com filhos, se encontram em maior número. A cifra apresentada deve ser tomada, contudo, sob alguma reserva; é natural que muitas raparigas solteiras com filhos não tenham revelado que são mães àqueles que preencheram os boletins. De vários destes casos tivemos posteriormente notícia.

Nota dos editores - 1)Recordamos que só a partir de 1 de Agosto de 1941, quando entrou em vigor a Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé, se passou de um sistema de casamento civil obrigatório para facultativo, em virtude do casamento católico ter sido admitido como outra modalidade de casamento.


Como inserimos as tabelas segundo o sistema de imagem, aconselhamos os nossos leitores a clicarem com o rato sobre elas, para que o visionamento seja mais perfeito. 
  
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