segunda-feira, 29 de julho de 2013

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios XXI


     Hoje publicamos reflexões não revistas por Luiz Fernando Carvalho Dias sobre Lanifícios / Covilhã / Mercadores / Cristãos-Novos.
     Incluímos ainda uns textos de autores que escreveram sobre estes assuntos e que, por isso, estariam no espólio de Carvalho Dias. É o caso das cartas de 1675 do Padre António Vieira e do Conde da Ericeira. Nelas transparecem as divergências de Vieira e da Companhia de Jesus com o Tribunal do Santo Ofício e o Governo de então. O Jesuíta criticava a Inquisição e defendia os cristãos-Novos tendo mesmo conseguido que D. João IV, em 1649, criasse a Companhia Geral do Comércio do Brasil. Acabou por sair perdedor de muitas destas contendas!

     “Quem relançasse os olhos pelo país neste ano da Restauração e procurasse analisar o valor da nossa indústria dos panos, verificaria que pouco avançara do regime da indústria caseira para o estádio mais avançado da divisão do trabalho.
       Salvo núcleos isolados e estes sem verdadeiro interesse económico, o fabrico dos panos desenvolvia-se na zona fronteiriça do país desde o Douro ao Guadiana, e acantonava-se, sobretudo, na zona da Serra da Estrela, na Vila da Covilhã e suas imediações, em Manteigas, em Melo e, possivelmente, em Gouveia, em Alcobaça, Minde, e em Lisboa e sua comarca.
    Contudo, na Covilhã concorreram circunstâncias especiais que podemos circunscrever a elementos étnicos - uma importante colónia de cristãos novos; a elementos naturais - as águas e as gredas; a elementos históricos – a tendência dos seus habitantes para esta indústria desde tempos remotos, as correntes dos gados na transumância, quer do norte, quer de Espanha; a situação geográfica de zona fronteiriça, um comércio desenvolvido. Tudo concorreu para elevar o velho burgo de D. Sancho à grande colmeia dos lanifícios portugueses.
      O fabrico dos panos estava intimamente ligado à criação do gado lanígero e ao comércio das lãs. A criação desenvolvia-se, é certo, por todo o país, mas em certas épocas do ano os gados corriam da Estrela para o Campo de Ourique e daqui para a Estrela novamente, em busca das pastagens e para fugir à invernia ou à estiagem. À Estrela concorriam também os gados espanhóis que desciam das escarpas de Segóvia ou subiam das terras ardentes da Estremadura para se saciarem nas terras frescas da Beira.
     As lãs também concorriam através do comércio em pesadas partidas, nas transacções dos comerciantes cristãos-novos que, desde a expulsão dos reis católicos, sempre mantiveram cá e lá as raízes da sua actividade.”

******

     “Seria interessante estudar a influência exercida pelo município covilhanense para manter a população cristã-nova e auxiliá-la. Os processos da Inquisição demonstram que até ao fim do século XVIII nunca as passageiras revoadas de actividade inquisitorial provieram da vila, da sua população nobre, ou mercantil, ou mesteiral. Até se nota o contrário: tanto o clero, como os operários, como os nobres cerram fileiras para a defesa dos cristãos-novos. Os capítulos do povo o evidenciam nas cortes da Restauração. Algumas testemunhas claramente se recusam a testemunhar contra eles e muitos dos mais nobres os defendem vigorosamente. O valor económico da vila estava ligado ao destino dos seus ricos mercadores. A estrutura económica da Covilhã pressupunha essa armadura mercadora. Só quando eles pretendem monopolizar, o povo se levantou e as revoltas se acenderam. É a história dos séculos XVII, XVIII e XIX.
      A Covilhã passou logo do ciclo caseiro para o ciclo artesanal e, auxiliada pelo mercador, cedo entrou também no ciclo capitalista: daqui facilmente transpôs a barreira que lhe abria as portas da vida industrial. Foi, pois, o comércio o grande impulsionador deste centro, ao passo que os outros, embora tivessem atingido as raias do artesanato, nunca transpuseram os umbrais do capitalismo e não chegaram, por isso, ao mundo industrial. Outros nunca saíram da crisálida caseira e nunca deixaram de produzir mais do que para as necessidades da família. A produção é intermitente e ocasional.
      A existência de teares só por si nada significa se não se estudarem os termos em que se desenvolve a produção e como esta entra no comércio e atinge o consumo.
      A Covilhã foi de todos os centros lanificiais o único que sobreviveu para a era industrial, por ter sido o que reuniu dentro dos seus muros as condições económicas e técnicas que a isso levavam.”

******

      “J. Lúcio d’Azevedo, em carta para Joaquim de Carvalho sobre o significado económico da emigração dos cristãos-novos portugueses que fugiram aos exageros da Inquisição, fundado em fontes holandesas, considera os emigrantes mendigos e usurários.
        Ora parece-nos que exactamente estas ocupações negam a teoria defendida, porquanto os mendigos seriam os artífices expulsos a que o mercantilismo xenófobo não deixaria usar das suas profissões, e os usurários – as viciosas mas únicas fontes de crédito de uma nação de comércio decadente e de indústrias depauperadas. Aliás esta conclusão está inteiramente de acordo com a tradição que espíritos clarividentes como D. Luiz da Cunha nos legaram, e ainda com outra fonte, tão pouco explorada entre nós para a história económica – as listas da Inquisição.”
    Estas listas, para a região da Covilhã, começaram a ser estudadas pelo autor Carvalho Dias, foram continuadas pelos editores, estando a ser publicadas neste blogue. Já aqui foi apresentada uma estatística sobre as listas dos séculos XVI a XVIII, onde, sem dúvida, encontrámos muitos mercadores e artesãos, como se pode verificar em:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
       “De facto comparadas as profissões dos autuados e o seu número elevadíssimo naqueles centros onde se desenvolviam as incipientes indústrias portuguesas no século XVI, logo ressalta à vista que é nos artífices dessas indústrias que se recrutam os indiciados. E o seu número é tão elevado, que confrontado com o baixo nível da população, somos levados a aventar a hipótese de que a grande maioria dos artesãos portugueses era constituída pela raça perseguida. Se assim não fosse, como explicar que só a partir do século XV as nossas indústrias passassem do círculo puramente doméstico para o artesanal, como aconteceu com os panos e, ainda, o acolhimento que D. João II e D. Manuel, espíritos realistas, deram aos expulsos de Espanha. Mais do que a capitação pessoal importavam os capitais que entravam; eles traziam à nossa economia rural e feudatária, uma rica mão-de-obra variada e especializada que vinha suprir as deficiências técnicas e económicas do fabrico e produção de panos e de outros géneros.
      Os cronistas não deixaram de registar as profissões dos intrusos. Convém acentuar também que a Espanha foi, anteriormente ao êxodo dos judeus, uma das fontes abastecedoras do nosso comércio lanificial e depois deixou de o ser. Como já revelámos noutro lugar, a decadência dos panos da Covilhã anteriormente ao Conde da Ericeira, é expressamente atribuída pelos mesteirais da Covilhã à emigração dos cristãos novos, conforme se refere nos capítulos às Cortes da Restauração.“

   Exemplo de Capítulos apresentados em 1641:
16
         Dizem Francisco Botelho da Guerra e João de Souza Falcão da Vila da Covilhã, procuradores das Cortes dela, que a dita Vila e seus moradores são obrigados a pagar a V. Mag.e de sisas em cada um ano um conto e cento e cinco mil seiscentos e trinta e sete reis, e cento e trinta arrateis de cera, ou cem reis por cada arratel, e ao tempo que se obrigaram pagar a dita quantia havia na dita Vila dois mil vizinhos e entre eles muitos mercadores ricos e poderosos que ajudavam a pagar, e se não faziam panos em este Reino mais que na dita Vila e na cidade de Portalegre e andava o trato vivo e se não faziam os ditos panos em as vilas de Castelo Branco, Idanha, Penamacor, Monsanto, Belmonte, Sortelha, Manteigas, Linhares, Melo, Celorico e outras que lhes ficam circumvizinhas, por razão do que o trato da dita vila se diminuiu de muito, que não podem os moradores sustentar tão grande carga e tambem por se ausentarem da dita Vila os mais ricos mercadores que nela havia que levaram mais de trezentos mil cruzados e porque as ditas vilas circunvizinhas estão muito aliviadas no pagamento das sizas e o trato da dita vila de Covilhã será hoje muito mais diminuto e a carga das ditas sizas muito maior por faltarem as lãs que vinham do Reino de Castela que o faziam aviventar, o que tambem fez diminuir o preço das sizas das correntes da dita Vila que antigamente andava arrendada em preço de trezentos mil rs. cada ano e hoje anda em sessenta mil reis.
         Pede a V. Mag.e que os alivie da dita carga e a mande repartir pelos cabeções das ditas vilas circunvizinhas. E.R.M. (1)

        “Aí, contudo, não se atribui ao capital dos egressos o simples carácter usurário das conclusões de J. Lúcio d’Azevedo, mas antes um contributo interessado ao desenvolvimento do comércio e da indústria. Basta conhecer a estrutura económica desse trato entre nós, aliás igual à de toda a Europa Ocidental, para concluir que não devia ser de outro modo, com a agravante de serem escassas então em Portugal as fontes de crédito e alarmantes, há muito, as dificuldades do Tesouro. A população portuguesa seria então constituída por quatro núcleos distintos: a nobreza, o clero e a lavoura, onde os elementos autóctones constituíam força unânime e coesa; os mercadores, artífices e artesãos com forte predomínio de cristãos-novos, quer dos portugueses, quer dos recentemente emigrados da Espanha. Esse predomínio torna-se quase exclusivo em toda a zona fronteiriça, desde o Norte ao Sul do Reino: aí prosperam as manufacturas da lã e da seda, sobrepondo-se à cultura semi-rural do linho e, com elas, se avoluma um forte tráfico internacional para as feiras de Medina e de Burgos, que a Monarquia dualista dos Áustrias facilita e o comércio das lãs largamente desenvolve. E é o judeu, nem português nem espanhol, com raízes de ambos os lados, o seu grande fomentador!
       Ao lado do comércio marítimo, todo voltado ao Ultramar e ao Norte, coexistiu este comércio continental de que a lã e o trigo foram os motivos.
       Perguntar-se-á porque é que os nossos arbitristas, tão fecundos em notícias económicas sobre as causas da decadência peninsular, não registam esse fenómeno da emigração judaica? Esquece-se que a Inquisição e seus esbirros, ainda longe de possuir as paredes-ouvidos dos aniquiladores sistemas das repúblicas totalitárias ou progressivas, tinham uma rede de áulicos que sufocava todo e qualquer eco que pudesse contrariar os seus intentos e cuidados. Assim, o movimento pró cristãos-novos que teve lugar no século XVII e o principal paladino no Padre António Vieira, foi logo sufocado e o seu ilustre mentor sujeito a ver cair sobre a sua batina a nódoa da heresia. Não é pois de admirar o facto, tanto mais saliente, quanto seja o próprio Gonçalo Villas Boas a afirmar nas suas Cartas (2) que no Portugal desse tempo havia assuntos que se deviam calar, entre os quais tudo o que se relacionasse com a Inquisição.”

******

Padre António Vieira

Carta de Vieira ao Conde da Ericeira

Antes de me ser dada a carta, preveni a obediência de V. S. vizitando o Inquisidor e deputado e oferecendo-me com muito sincero coração aos servir no limite do meu pouco préstimo, nem certo nas ocasiões que tenho de repetir estes ofícios, como a razão pede, e V. s. me ordena.
Quanto à causa que tratam além de eu não ser figura para representar papel em um tão grande teatro, nem por uma, nem por outra parte me tenho metido, ou meterei, por assim o ter ordenado o nosso Reverendíssimo Padre a quantos portugueses aqui assistimos severissímamente, e creio castigará com a mesma severidade aos dessa Província, se é que favorecerem cristãos-novos contra a razão, segundo V. S. me significa e eu grandemente sinto.
Mas se eles só responderam o que entendiam, a S. A., sendo perguntados e resolveram como mostram seus papéis autênticos, que o Príncipe não podia impedir o recurso dos Cristãos Novos à Sé Apostólica, a quem pediam, ou a justiça ou favor, nem a execução dos Breves do Papa passados com madura deliberação, e ouvidas as partes, não só me persuado não terão castigo, mas louvor, e ainda prémio.
Mas confesso ingenuamente a V. S. que não acho no pouco que estudei, pudesse, não digo Letrado, mas Católico, responder o contrário, e eu estou não digo só maravilhado, mas envergonhado de ouvir em Roma com tanta publicidade, que o contrário se respondesse nas cartas desse Reino, ao qual, quem o desculpa aqui, chama bárbaro, e quem chama mais livremente chama Inglaterra rebelada conta a Igreja; com esta diferença, que Inglaterra nega a superioridade do Papa, pela dar a um Rei secular, e Portugal, pela dar a eclesiásticos inferiores ao Papa: é falar sem razão, nem fundamento.
Meu Senhor, eu não digo, que os Cristãos-Novos pedem perdão geral, com mudanças de estilos e que não sei, nem se pedem cousa justa, em que sejam despachados: este ponto não me toca, nem a algum fora do Papa; porque ninguém fora dele é supremo juiz da terra, das causas eclesiásticas pertencentes à fé; mas que se diga que um Réu de crime eclesiástico, e da fé, se possa justamente impedir, para não ser ouvido do seu juiz, ou que determinando o seu juiz alguma coisa tocante à fé, na qual é certo não pode errar, não hajam católicos de lhe obedecer, para mim não há maior enleio, e o não pode deixar de ser para o grande entendimento de V. S., assim como tem sido para os excelentes, piíssimos, zelosos, que tem esta Corte e se lá não parece justo conceder-se o perdão, ou mudança de estilos, ponha-se toda a força em prover a injustiça com eficazes razões.
E seguro a V. S., serem bem ouvidos do Papa, e Tribunal Supremo da inquisição, mui diferente de qualquer outro, onde talvez se concede uma graça ou por boa peita, ou por má informação. Do da Inquisição é notório a quantos aqui estamos, não valerem nunca peitas, nem poderem valer na ocasião presente más informações; de peitas são incapazes quantos entram no Tribunal, não só por princípios riquíssimos, mas por serem os que toda a Corte venera pelos mais rectos e santos: más informações, em caso que se dessem, são contraditadas pela parte, são examinadas com grande madureza, tem por especuladores não só a inteireza dos juízes, mas os juízos de quantos aqui há parciais de Castela e França, que todos esses por superiores motivos se opõem ao intento dos cristãos-novos: donde, se esses não têm razão no que pedem, nenhuma há-de temor; e se o Papa, informado pelos Supremos Inquisidores, o julgar assim, protesto de o crer antes a ele, que aos nossos inquisidores, posto que tenha o seu procedimento por recto e por isso sinto mais ouvir, que desse ocasião a se fazer a causa, que era de gente de nação, causa da Sé Apostólica, como está feita ssegundo o aviso que nesta posta de lá nos chegou, de intimação do Breve avocatório da causa a Roma. Etª 12 de Janeiro de 1675.
     
Criado de V. S.
                                 Antonio Viejra


Conde da Ericeira

Resposta do Conde da Ericeira

Muito estimo que V. Paternidade se antecipasse a buscar os Ministros eclesiásticos que daqui foram a essa Corte; e não duvido lhes assistirá com tão sincero coração, como me assegura, em tão santo e justo requerimento, como por o que os obrigou a esta jornada, pois o fim principal dela, é o zelo da fé, e estirpação das heresias, que com industriosas cavilações se quer isentar dos meios eficazes por onde as suas culpas se examinam, e se sujeitam ao castigo, e os Sagrados Cânones estabeleceram.
 Sendo esta matéria do sumo Pontífice, que reconhecemos e veneramos como vigário de Cristo, sucessor de S. pedro, e cabeça universal da igreja Católica, e dos Cardeais eminentíssimos, que lhe assistem, causa admiração, que a indústria dos Hebreus possa embaraçar de sorte os juízos mais puros, que chegue a introduzir na cúria Romana falsas informações, e ofendam a pureza católica, e sólidos fundamentos com que neste negócio que tem procedido. O que mais lastima, não é que os de Nação tratem de seu remédio, senão que achem patrocínio, e pareceres de quem esperavamos se ofendessem mais de suas propostas, que assim por encontrarem os Breves Apostólicos, em que consiste toda a autoridade do Santo Ofício, como por serem muitas vezes examinados e rebatidos.
O pretexto de que se valem é da disposição da Bula da Ceia, em cujas censuras incorre sem dúvida, o que impede com violência o recurso em matérias espirituais ao Sumo Pontífice, a que só pertence: e não havendo quem contradissesse esta sólida doutrina, se quiz dela tirar uma consequência, que pareceu estranha, e irracional, não só aos doutos, como aos Bispos de Lamego, Elvas, que sobre ela escreveram aos mais Prelados, e Lentes da universidade, mas ainda àqueles que só a conceberam com livre juízo: e é não só obrigado S. A. a não impedir com violência aos de Nação o recurso ao Papa, que sempre tiveram livre, sem haver lei, ou demonstração, que o impedisse, senão a promover, e patrocinar nessa cúria os seus justos requerimentos, quando se reconhece não ser prejuízo da República, e da Religião, dificultando-se os meios de se castigar a heresia; mas ainda se perturba a mesma República com a notícia deste requerimento, e se podem temer maiores excessos, não contra a autoridade pontifícia, que todos veneramos, se não contra os de Nação, e seus factores, que a todos escandaliza: e assim como V. Paternidade me diz, que se admira de que haja quem duvide do que dispõem a Bula, me admiro eu muito mais, de haver quem dela tire uma consequência tão diversa do que dispõem a mesma Bula: assim constou que muito grandes Letrados, que confirmaram com seus pareceres a simples proposta, condenaram depois a consequência que se quiz tirar dela.
Ninguém duvida que o Papa é suprema cabeça da Igreja, e do Santo Ofício, que ele constituiui, e pode não só alterar os estilos que ele concedeu com os seus Breves, senão também extingui-lo; o que se pretende é só mostrar-lhe, o que não convém, pois a forma que se observa tem mostrado largas experiências, é a mais segura e conveniente ao dano que este reino padece, e acreditada com a autoridade dos mais graves Autores, e muitos deles da Companhia. E se há quem nessa Corte chama bárbaro a este procedimento, mais merece este título que tão injustamente infama o Reino em que florece a pureza da fé, e a autoridade pontifícia que aí vimos tantas vezes diminuída, e dividida com prejudiciais crimes, e ofendida com prisões, desterros, e opróbrios, como as Histórias justificam; e se em Inglaterra se procedera nesta forma, não experimentara a Religião Católica tão lamentáveis prejuízos.
Assim tenho V. Paternidade por certo que nada se obrou nas Cortes, nem fora delas, que encontrasse, nem por imaginação a autoridade do Papa: só se pretende mostrar a S. A. o enleio, e falsidade com que pretendiam embaraçar-lhe a sua pura consciência, querendo-o persuadir não era só obrigado a não impedir o recurso, senão também a promovê-lo; antes que, como Príncipe tão católico e com o exemplo del Rei D. João III, e outros seus antecessores, devia representar ao Papa com toda a reverência e eficácia, os inconvenientes católicos e políticos de tão prejudicial procedimento, pois se não trata de que o Papa não pode, se não de que não deve, nem convém permitir torne a pôr em dúvida uma matéria com tanta ponderação examinada, e decidida em Madrid ultimamente na grave junta, que se fez governando Filipe IV em que, examinados os mesmos pontos, se mandou pôr na causa perpétuo silêncio, aprovando-se com grandes incómios os estilos, e rectos procedimentos do Stº. Ofício. Não duvido que no Tribunal Supremo dessa Corte, que consta de tantos Príncipes e Varões insignes, e despacham diante do Papa os mais graves negócios, se proceda neste com toda a circunspecção e inteireza, que V. Paterniadade me segura; mas como em Itália nao está viciado, como entre nós, o corpo da República, procede-se com mais suavidade, e admite-se sem prejuizo e opinião mais benigna; e pode-se temer que esta experiência incline os ânimos do mesmo estilo; mas onde o mal está encarcerado e se vê que não bastam os lenitivos, parece mais necessário abraçar a opinião mais severa, e aplicar os remédios mais violentos; e não posso negar me causa horror que se admitam testemunhas singulares no crime de leza magestade humana e outros muitos, e se admitam nos que tocam à Magestade Divina quando contestam, que se cometeu o da heresia, e tem qualidades relevantes.
Perdoe-me V. Paternidade alargar-me nesta matéria mais do que determinava, mas levou-me traz si o zelo dela, e as consequências, que receio, se for adiante e se não atalhar, como espero na Divina Misericórdia que assistirá ao Papa, e mais Ministros em um negócio de fé, cuja pura conservação só todos desejamos; mas não me posso abster de referir a V. Paternidade com grande sentimento, pelo que amo a Companhia, a opinião que se lhe diminuiu em todo este Reino, persuadindo-se, que por respeitos particulares favorece a gente de Nação, e posto que seja falso este motivo, não é fácil de arrancar os ânimos de todos, o conceito que uma vez formaram, quando vêem demonstrações que lhes persuadem o contrário.” (3)


******

                Do muito gado de toda a sorte que há neste reino.

A muita cópia de gado de todo o género que há neste reino, procede das muitas hervagens que nelle ha por causa das muitas aguas das fontes e rios com que a terra he regada: e pelo bom temperamento dos ares: que não somente he bastante para sustentar o gado do reino, mas soião os moradores dos campos d’Ourique, e de outros lugares de alem Tejo, no inverno, e os da serra da Estrella no verão arrendar parte das suas heruagães (sic), que podião escusar aos Sorianos, e moradores outros de Castella que a este reino vinhão, pastar seus gados. A qual entrada se defendeo por os muitos enganos que os forasteiros nisso commettiam, que quando tornavam com cobertura dos seus gados, levavam muito que compravam no reino misturado com os seus a que a nunqua se pode obuiar com rigurosas leis que sobre isto já de tempos antigos havia de decepamento de pées, perdimento de fazendas, e grandes degrados, as quaes dos passadores sempre foram iludidas, por o Reino de Portugal ser tão contiguo do de Castella. Mas sem embargo dos grandes furtos que os passadores fazem, cada dia ha grande abundancia de gado. Porque soo na terra de entre Douro e Minho, que não tem de longura mais de 18 legoas, e que de largo tem muitas menos, se afirma haver 400.000 cabeças de gado vacum: e de ovelhas cabras e porcos 1.000.000. E das muitas ovelhas que neste reino há, dão também testemunho as muitas lãs que se dele sempre tiraram para Flandres e para Inglaterra quando com Ingleses tinhamos comercio afora os muitos panos e finos que se já fazem em Portugal nas partes de alen Tejo, e nas mais chegadas à Serra da Estrella, como Portalegre, Couilhãa com suas trezentas e sessenta e tantas aldeas e em Castello de Vide e outros muitos lugares de alem tejo .... “ (4)

******

 “ 5 – Las lanas de toda suerte asperas, ò blandas fueron siempre materia, aquellas a la labor de las cosas más bastas, pero no menos importantes: estas a los más finos paños en que se esmerava Londres, en tiempo que la vanidad aun dexava hazer estimacion de lo durable, y oy lo son a los que se texen en el propio Reino en varias oficinas por excelentes laborantes: Portalegre, Covillan, Castel de Vide, y Redondo se aventajan”. (5)

******
Fontes – 1) Capítulos às Cortes de 1641, Capítulos Especiais da Covilhã, maço 9 de Cortes nº 7
2) Estão publicadas em "Os Lanifícios na Política Económica do Conde da Ericeira" (Documentos),II Volume
3) In: Várias Obras do Padre António Vieyra, Da Companhia de Jesu. Tomo XIV – Cod. 453 V. da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
4) “Descrição do Reino de Portugal” – Duarte Nunes de Leão, Lisboa 1610, BNL Reservados
5) Manoel Faria e Souza, Europa Portuguesa, Lisboa, 1676, Tomo 3, P. 3, Cap. 8, fls 181

As Publicações do blogue:

Sem comentários:

Enviar um comentário