segunda-feira, 29 de julho de 2013

Covilhã - Contributos para a sua História dos Lanifícios XXI


     Hoje publicamos reflexões não revistas por Luiz Fernando Carvalho Dias sobre Lanifícios / Covilhã / Mercadores / Cristãos-Novos.
     Incluímos ainda uns textos de autores que escreveram sobre estes assuntos e que, por isso, estariam no espólio de Carvalho Dias. É o caso das cartas de 1675 do Padre António Vieira e do Conde da Ericeira. Nelas transparecem as divergências de Vieira e da Companhia de Jesus com o Tribunal do Santo Ofício e o Governo de então. O Jesuíta criticava a Inquisição e defendia os cristãos-Novos tendo mesmo conseguido que D. João IV, em 1649, criasse a Companhia Geral do Comércio do Brasil. Acabou por sair perdedor de muitas destas contendas!

     “Quem relançasse os olhos pelo país neste ano da Restauração e procurasse analisar o valor da nossa indústria dos panos, verificaria que pouco avançara do regime da indústria caseira para o estádio mais avançado da divisão do trabalho.
       Salvo núcleos isolados e estes sem verdadeiro interesse económico, o fabrico dos panos desenvolvia-se na zona fronteiriça do país desde o Douro ao Guadiana, e acantonava-se, sobretudo, na zona da Serra da Estrela, na Vila da Covilhã e suas imediações, em Manteigas, em Melo e, possivelmente, em Gouveia, em Alcobaça, Minde, e em Lisboa e sua comarca.
    Contudo, na Covilhã concorreram circunstâncias especiais que podemos circunscrever a elementos étnicos - uma importante colónia de cristãos novos; a elementos naturais - as águas e as gredas; a elementos históricos – a tendência dos seus habitantes para esta indústria desde tempos remotos, as correntes dos gados na transumância, quer do norte, quer de Espanha; a situação geográfica de zona fronteiriça, um comércio desenvolvido. Tudo concorreu para elevar o velho burgo de D. Sancho à grande colmeia dos lanifícios portugueses.
      O fabrico dos panos estava intimamente ligado à criação do gado lanígero e ao comércio das lãs. A criação desenvolvia-se, é certo, por todo o país, mas em certas épocas do ano os gados corriam da Estrela para o Campo de Ourique e daqui para a Estrela novamente, em busca das pastagens e para fugir à invernia ou à estiagem. À Estrela concorriam também os gados espanhóis que desciam das escarpas de Segóvia ou subiam das terras ardentes da Estremadura para se saciarem nas terras frescas da Beira.
     As lãs também concorriam através do comércio em pesadas partidas, nas transacções dos comerciantes cristãos-novos que, desde a expulsão dos reis católicos, sempre mantiveram cá e lá as raízes da sua actividade.”

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     “Seria interessante estudar a influência exercida pelo município covilhanense para manter a população cristã-nova e auxiliá-la. Os processos da Inquisição demonstram que até ao fim do século XVIII nunca as passageiras revoadas de actividade inquisitorial provieram da vila, da sua população nobre, ou mercantil, ou mesteiral. Até se nota o contrário: tanto o clero, como os operários, como os nobres cerram fileiras para a defesa dos cristãos-novos. Os capítulos do povo o evidenciam nas cortes da Restauração. Algumas testemunhas claramente se recusam a testemunhar contra eles e muitos dos mais nobres os defendem vigorosamente. O valor económico da vila estava ligado ao destino dos seus ricos mercadores. A estrutura económica da Covilhã pressupunha essa armadura mercadora. Só quando eles pretendem monopolizar, o povo se levantou e as revoltas se acenderam. É a história dos séculos XVII, XVIII e XIX.
      A Covilhã passou logo do ciclo caseiro para o ciclo artesanal e, auxiliada pelo mercador, cedo entrou também no ciclo capitalista: daqui facilmente transpôs a barreira que lhe abria as portas da vida industrial. Foi, pois, o comércio o grande impulsionador deste centro, ao passo que os outros, embora tivessem atingido as raias do artesanato, nunca transpuseram os umbrais do capitalismo e não chegaram, por isso, ao mundo industrial. Outros nunca saíram da crisálida caseira e nunca deixaram de produzir mais do que para as necessidades da família. A produção é intermitente e ocasional.
      A existência de teares só por si nada significa se não se estudarem os termos em que se desenvolve a produção e como esta entra no comércio e atinge o consumo.
      A Covilhã foi de todos os centros lanificiais o único que sobreviveu para a era industrial, por ter sido o que reuniu dentro dos seus muros as condições económicas e técnicas que a isso levavam.”

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      “J. Lúcio d’Azevedo, em carta para Joaquim de Carvalho sobre o significado económico da emigração dos cristãos-novos portugueses que fugiram aos exageros da Inquisição, fundado em fontes holandesas, considera os emigrantes mendigos e usurários.
        Ora parece-nos que exactamente estas ocupações negam a teoria defendida, porquanto os mendigos seriam os artífices expulsos a que o mercantilismo xenófobo não deixaria usar das suas profissões, e os usurários – as viciosas mas únicas fontes de crédito de uma nação de comércio decadente e de indústrias depauperadas. Aliás esta conclusão está inteiramente de acordo com a tradição que espíritos clarividentes como D. Luiz da Cunha nos legaram, e ainda com outra fonte, tão pouco explorada entre nós para a história económica – as listas da Inquisição.”
    Estas listas, para a região da Covilhã, começaram a ser estudadas pelo autor Carvalho Dias, foram continuadas pelos editores, estando a ser publicadas neste blogue. Já aqui foi apresentada uma estatística sobre as listas dos séculos XVI a XVIII, onde, sem dúvida, encontrámos muitos mercadores e artesãos, como se pode verificar em:
http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2011/11/covilha-lista-dos-sentenciados-na.html
       “De facto comparadas as profissões dos autuados e o seu número elevadíssimo naqueles centros onde se desenvolviam as incipientes indústrias portuguesas no século XVI, logo ressalta à vista que é nos artífices dessas indústrias que se recrutam os indiciados. E o seu número é tão elevado, que confrontado com o baixo nível da população, somos levados a aventar a hipótese de que a grande maioria dos artesãos portugueses era constituída pela raça perseguida. Se assim não fosse, como explicar que só a partir do século XV as nossas indústrias passassem do círculo puramente doméstico para o artesanal, como aconteceu com os panos e, ainda, o acolhimento que D. João II e D. Manuel, espíritos realistas, deram aos expulsos de Espanha. Mais do que a capitação pessoal importavam os capitais que entravam; eles traziam à nossa economia rural e feudatária, uma rica mão-de-obra variada e especializada que vinha suprir as deficiências técnicas e económicas do fabrico e produção de panos e de outros géneros.
      Os cronistas não deixaram de registar as profissões dos intrusos. Convém acentuar também que a Espanha foi, anteriormente ao êxodo dos judeus, uma das fontes abastecedoras do nosso comércio lanificial e depois deixou de o ser. Como já revelámos noutro lugar, a decadência dos panos da Covilhã anteriormente ao Conde da Ericeira, é expressamente atribuída pelos mesteirais da Covilhã à emigração dos cristãos novos, conforme se refere nos capítulos às Cortes da Restauração.“

   Exemplo de Capítulos apresentados em 1641:
16
         Dizem Francisco Botelho da Guerra e João de Souza Falcão da Vila da Covilhã, procuradores das Cortes dela, que a dita Vila e seus moradores são obrigados a pagar a V. Mag.e de sisas em cada um ano um conto e cento e cinco mil seiscentos e trinta e sete reis, e cento e trinta arrateis de cera, ou cem reis por cada arratel, e ao tempo que se obrigaram pagar a dita quantia havia na dita Vila dois mil vizinhos e entre eles muitos mercadores ricos e poderosos que ajudavam a pagar, e se não faziam panos em este Reino mais que na dita Vila e na cidade de Portalegre e andava o trato vivo e se não faziam os ditos panos em as vilas de Castelo Branco, Idanha, Penamacor, Monsanto, Belmonte, Sortelha, Manteigas, Linhares, Melo, Celorico e outras que lhes ficam circumvizinhas, por razão do que o trato da dita vila se diminuiu de muito, que não podem os moradores sustentar tão grande carga e tambem por se ausentarem da dita Vila os mais ricos mercadores que nela havia que levaram mais de trezentos mil cruzados e porque as ditas vilas circunvizinhas estão muito aliviadas no pagamento das sizas e o trato da dita vila de Covilhã será hoje muito mais diminuto e a carga das ditas sizas muito maior por faltarem as lãs que vinham do Reino de Castela que o faziam aviventar, o que tambem fez diminuir o preço das sizas das correntes da dita Vila que antigamente andava arrendada em preço de trezentos mil rs. cada ano e hoje anda em sessenta mil reis.
         Pede a V. Mag.e que os alivie da dita carga e a mande repartir pelos cabeções das ditas vilas circunvizinhas. E.R.M. (1)

        “Aí, contudo, não se atribui ao capital dos egressos o simples carácter usurário das conclusões de J. Lúcio d’Azevedo, mas antes um contributo interessado ao desenvolvimento do comércio e da indústria. Basta conhecer a estrutura económica desse trato entre nós, aliás igual à de toda a Europa Ocidental, para concluir que não devia ser de outro modo, com a agravante de serem escassas então em Portugal as fontes de crédito e alarmantes, há muito, as dificuldades do Tesouro. A população portuguesa seria então constituída por quatro núcleos distintos: a nobreza, o clero e a lavoura, onde os elementos autóctones constituíam força unânime e coesa; os mercadores, artífices e artesãos com forte predomínio de cristãos-novos, quer dos portugueses, quer dos recentemente emigrados da Espanha. Esse predomínio torna-se quase exclusivo em toda a zona fronteiriça, desde o Norte ao Sul do Reino: aí prosperam as manufacturas da lã e da seda, sobrepondo-se à cultura semi-rural do linho e, com elas, se avoluma um forte tráfico internacional para as feiras de Medina e de Burgos, que a Monarquia dualista dos Áustrias facilita e o comércio das lãs largamente desenvolve. E é o judeu, nem português nem espanhol, com raízes de ambos os lados, o seu grande fomentador!
       Ao lado do comércio marítimo, todo voltado ao Ultramar e ao Norte, coexistiu este comércio continental de que a lã e o trigo foram os motivos.
       Perguntar-se-á porque é que os nossos arbitristas, tão fecundos em notícias económicas sobre as causas da decadência peninsular, não registam esse fenómeno da emigração judaica? Esquece-se que a Inquisição e seus esbirros, ainda longe de possuir as paredes-ouvidos dos aniquiladores sistemas das repúblicas totalitárias ou progressivas, tinham uma rede de áulicos que sufocava todo e qualquer eco que pudesse contrariar os seus intentos e cuidados. Assim, o movimento pró cristãos-novos que teve lugar no século XVII e o principal paladino no Padre António Vieira, foi logo sufocado e o seu ilustre mentor sujeito a ver cair sobre a sua batina a nódoa da heresia. Não é pois de admirar o facto, tanto mais saliente, quanto seja o próprio Gonçalo Villas Boas a afirmar nas suas Cartas (2) que no Portugal desse tempo havia assuntos que se deviam calar, entre os quais tudo o que se relacionasse com a Inquisição.”

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Padre António Vieira

Carta de Vieira ao Conde da Ericeira

Antes de me ser dada a carta, preveni a obediência de V. S. vizitando o Inquisidor e deputado e oferecendo-me com muito sincero coração aos servir no limite do meu pouco préstimo, nem certo nas ocasiões que tenho de repetir estes ofícios, como a razão pede, e V. s. me ordena.
Quanto à causa que tratam além de eu não ser figura para representar papel em um tão grande teatro, nem por uma, nem por outra parte me tenho metido, ou meterei, por assim o ter ordenado o nosso Reverendíssimo Padre a quantos portugueses aqui assistimos severissímamente, e creio castigará com a mesma severidade aos dessa Província, se é que favorecerem cristãos-novos contra a razão, segundo V. S. me significa e eu grandemente sinto.
Mas se eles só responderam o que entendiam, a S. A., sendo perguntados e resolveram como mostram seus papéis autênticos, que o Príncipe não podia impedir o recurso dos Cristãos Novos à Sé Apostólica, a quem pediam, ou a justiça ou favor, nem a execução dos Breves do Papa passados com madura deliberação, e ouvidas as partes, não só me persuado não terão castigo, mas louvor, e ainda prémio.
Mas confesso ingenuamente a V. S. que não acho no pouco que estudei, pudesse, não digo Letrado, mas Católico, responder o contrário, e eu estou não digo só maravilhado, mas envergonhado de ouvir em Roma com tanta publicidade, que o contrário se respondesse nas cartas desse Reino, ao qual, quem o desculpa aqui, chama bárbaro, e quem chama mais livremente chama Inglaterra rebelada conta a Igreja; com esta diferença, que Inglaterra nega a superioridade do Papa, pela dar a um Rei secular, e Portugal, pela dar a eclesiásticos inferiores ao Papa: é falar sem razão, nem fundamento.
Meu Senhor, eu não digo, que os Cristãos-Novos pedem perdão geral, com mudanças de estilos e que não sei, nem se pedem cousa justa, em que sejam despachados: este ponto não me toca, nem a algum fora do Papa; porque ninguém fora dele é supremo juiz da terra, das causas eclesiásticas pertencentes à fé; mas que se diga que um Réu de crime eclesiástico, e da fé, se possa justamente impedir, para não ser ouvido do seu juiz, ou que determinando o seu juiz alguma coisa tocante à fé, na qual é certo não pode errar, não hajam católicos de lhe obedecer, para mim não há maior enleio, e o não pode deixar de ser para o grande entendimento de V. S., assim como tem sido para os excelentes, piíssimos, zelosos, que tem esta Corte e se lá não parece justo conceder-se o perdão, ou mudança de estilos, ponha-se toda a força em prover a injustiça com eficazes razões.
E seguro a V. S., serem bem ouvidos do Papa, e Tribunal Supremo da inquisição, mui diferente de qualquer outro, onde talvez se concede uma graça ou por boa peita, ou por má informação. Do da Inquisição é notório a quantos aqui estamos, não valerem nunca peitas, nem poderem valer na ocasião presente más informações; de peitas são incapazes quantos entram no Tribunal, não só por princípios riquíssimos, mas por serem os que toda a Corte venera pelos mais rectos e santos: más informações, em caso que se dessem, são contraditadas pela parte, são examinadas com grande madureza, tem por especuladores não só a inteireza dos juízes, mas os juízos de quantos aqui há parciais de Castela e França, que todos esses por superiores motivos se opõem ao intento dos cristãos-novos: donde, se esses não têm razão no que pedem, nenhuma há-de temor; e se o Papa, informado pelos Supremos Inquisidores, o julgar assim, protesto de o crer antes a ele, que aos nossos inquisidores, posto que tenha o seu procedimento por recto e por isso sinto mais ouvir, que desse ocasião a se fazer a causa, que era de gente de nação, causa da Sé Apostólica, como está feita ssegundo o aviso que nesta posta de lá nos chegou, de intimação do Breve avocatório da causa a Roma. Etª 12 de Janeiro de 1675.
     
Criado de V. S.
                                 Antonio Viejra


Conde da Ericeira

Resposta do Conde da Ericeira

Muito estimo que V. Paternidade se antecipasse a buscar os Ministros eclesiásticos que daqui foram a essa Corte; e não duvido lhes assistirá com tão sincero coração, como me assegura, em tão santo e justo requerimento, como por o que os obrigou a esta jornada, pois o fim principal dela, é o zelo da fé, e estirpação das heresias, que com industriosas cavilações se quer isentar dos meios eficazes por onde as suas culpas se examinam, e se sujeitam ao castigo, e os Sagrados Cânones estabeleceram.
 Sendo esta matéria do sumo Pontífice, que reconhecemos e veneramos como vigário de Cristo, sucessor de S. pedro, e cabeça universal da igreja Católica, e dos Cardeais eminentíssimos, que lhe assistem, causa admiração, que a indústria dos Hebreus possa embaraçar de sorte os juízos mais puros, que chegue a introduzir na cúria Romana falsas informações, e ofendam a pureza católica, e sólidos fundamentos com que neste negócio que tem procedido. O que mais lastima, não é que os de Nação tratem de seu remédio, senão que achem patrocínio, e pareceres de quem esperavamos se ofendessem mais de suas propostas, que assim por encontrarem os Breves Apostólicos, em que consiste toda a autoridade do Santo Ofício, como por serem muitas vezes examinados e rebatidos.
O pretexto de que se valem é da disposição da Bula da Ceia, em cujas censuras incorre sem dúvida, o que impede com violência o recurso em matérias espirituais ao Sumo Pontífice, a que só pertence: e não havendo quem contradissesse esta sólida doutrina, se quiz dela tirar uma consequência, que pareceu estranha, e irracional, não só aos doutos, como aos Bispos de Lamego, Elvas, que sobre ela escreveram aos mais Prelados, e Lentes da universidade, mas ainda àqueles que só a conceberam com livre juízo: e é não só obrigado S. A. a não impedir com violência aos de Nação o recurso ao Papa, que sempre tiveram livre, sem haver lei, ou demonstração, que o impedisse, senão a promover, e patrocinar nessa cúria os seus justos requerimentos, quando se reconhece não ser prejuízo da República, e da Religião, dificultando-se os meios de se castigar a heresia; mas ainda se perturba a mesma República com a notícia deste requerimento, e se podem temer maiores excessos, não contra a autoridade pontifícia, que todos veneramos, se não contra os de Nação, e seus factores, que a todos escandaliza: e assim como V. Paternidade me diz, que se admira de que haja quem duvide do que dispõem a Bula, me admiro eu muito mais, de haver quem dela tire uma consequência tão diversa do que dispõem a mesma Bula: assim constou que muito grandes Letrados, que confirmaram com seus pareceres a simples proposta, condenaram depois a consequência que se quiz tirar dela.
Ninguém duvida que o Papa é suprema cabeça da Igreja, e do Santo Ofício, que ele constituiui, e pode não só alterar os estilos que ele concedeu com os seus Breves, senão também extingui-lo; o que se pretende é só mostrar-lhe, o que não convém, pois a forma que se observa tem mostrado largas experiências, é a mais segura e conveniente ao dano que este reino padece, e acreditada com a autoridade dos mais graves Autores, e muitos deles da Companhia. E se há quem nessa Corte chama bárbaro a este procedimento, mais merece este título que tão injustamente infama o Reino em que florece a pureza da fé, e a autoridade pontifícia que aí vimos tantas vezes diminuída, e dividida com prejudiciais crimes, e ofendida com prisões, desterros, e opróbrios, como as Histórias justificam; e se em Inglaterra se procedera nesta forma, não experimentara a Religião Católica tão lamentáveis prejuízos.
Assim tenho V. Paternidade por certo que nada se obrou nas Cortes, nem fora delas, que encontrasse, nem por imaginação a autoridade do Papa: só se pretende mostrar a S. A. o enleio, e falsidade com que pretendiam embaraçar-lhe a sua pura consciência, querendo-o persuadir não era só obrigado a não impedir o recurso, senão também a promovê-lo; antes que, como Príncipe tão católico e com o exemplo del Rei D. João III, e outros seus antecessores, devia representar ao Papa com toda a reverência e eficácia, os inconvenientes católicos e políticos de tão prejudicial procedimento, pois se não trata de que o Papa não pode, se não de que não deve, nem convém permitir torne a pôr em dúvida uma matéria com tanta ponderação examinada, e decidida em Madrid ultimamente na grave junta, que se fez governando Filipe IV em que, examinados os mesmos pontos, se mandou pôr na causa perpétuo silêncio, aprovando-se com grandes incómios os estilos, e rectos procedimentos do Stº. Ofício. Não duvido que no Tribunal Supremo dessa Corte, que consta de tantos Príncipes e Varões insignes, e despacham diante do Papa os mais graves negócios, se proceda neste com toda a circunspecção e inteireza, que V. Paterniadade me segura; mas como em Itália nao está viciado, como entre nós, o corpo da República, procede-se com mais suavidade, e admite-se sem prejuizo e opinião mais benigna; e pode-se temer que esta experiência incline os ânimos do mesmo estilo; mas onde o mal está encarcerado e se vê que não bastam os lenitivos, parece mais necessário abraçar a opinião mais severa, e aplicar os remédios mais violentos; e não posso negar me causa horror que se admitam testemunhas singulares no crime de leza magestade humana e outros muitos, e se admitam nos que tocam à Magestade Divina quando contestam, que se cometeu o da heresia, e tem qualidades relevantes.
Perdoe-me V. Paternidade alargar-me nesta matéria mais do que determinava, mas levou-me traz si o zelo dela, e as consequências, que receio, se for adiante e se não atalhar, como espero na Divina Misericórdia que assistirá ao Papa, e mais Ministros em um negócio de fé, cuja pura conservação só todos desejamos; mas não me posso abster de referir a V. Paternidade com grande sentimento, pelo que amo a Companhia, a opinião que se lhe diminuiu em todo este Reino, persuadindo-se, que por respeitos particulares favorece a gente de Nação, e posto que seja falso este motivo, não é fácil de arrancar os ânimos de todos, o conceito que uma vez formaram, quando vêem demonstrações que lhes persuadem o contrário.” (3)


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                Do muito gado de toda a sorte que há neste reino.

A muita cópia de gado de todo o género que há neste reino, procede das muitas hervagens que nelle ha por causa das muitas aguas das fontes e rios com que a terra he regada: e pelo bom temperamento dos ares: que não somente he bastante para sustentar o gado do reino, mas soião os moradores dos campos d’Ourique, e de outros lugares de alem Tejo, no inverno, e os da serra da Estrella no verão arrendar parte das suas heruagães (sic), que podião escusar aos Sorianos, e moradores outros de Castella que a este reino vinhão, pastar seus gados. A qual entrada se defendeo por os muitos enganos que os forasteiros nisso commettiam, que quando tornavam com cobertura dos seus gados, levavam muito que compravam no reino misturado com os seus a que a nunqua se pode obuiar com rigurosas leis que sobre isto já de tempos antigos havia de decepamento de pées, perdimento de fazendas, e grandes degrados, as quaes dos passadores sempre foram iludidas, por o Reino de Portugal ser tão contiguo do de Castella. Mas sem embargo dos grandes furtos que os passadores fazem, cada dia ha grande abundancia de gado. Porque soo na terra de entre Douro e Minho, que não tem de longura mais de 18 legoas, e que de largo tem muitas menos, se afirma haver 400.000 cabeças de gado vacum: e de ovelhas cabras e porcos 1.000.000. E das muitas ovelhas que neste reino há, dão também testemunho as muitas lãs que se dele sempre tiraram para Flandres e para Inglaterra quando com Ingleses tinhamos comercio afora os muitos panos e finos que se já fazem em Portugal nas partes de alen Tejo, e nas mais chegadas à Serra da Estrella, como Portalegre, Couilhãa com suas trezentas e sessenta e tantas aldeas e em Castello de Vide e outros muitos lugares de alem tejo .... “ (4)

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 “ 5 – Las lanas de toda suerte asperas, ò blandas fueron siempre materia, aquellas a la labor de las cosas más bastas, pero no menos importantes: estas a los más finos paños en que se esmerava Londres, en tiempo que la vanidad aun dexava hazer estimacion de lo durable, y oy lo son a los que se texen en el propio Reino en varias oficinas por excelentes laborantes: Portalegre, Covillan, Castel de Vide, y Redondo se aventajan”. (5)

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Fontes – 1) Capítulos às Cortes de 1641, Capítulos Especiais da Covilhã, maço 9 de Cortes nº 7
2) Estão publicadas em "Os Lanifícios na Política Económica do Conde da Ericeira" (Documentos),II Volume
3) In: Várias Obras do Padre António Vieyra, Da Companhia de Jesu. Tomo XIV – Cod. 453 V. da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
4) “Descrição do Reino de Portugal” – Duarte Nunes de Leão, Lisboa 1610, BNL Reservados
5) Manoel Faria e Souza, Europa Portuguesa, Lisboa, 1676, Tomo 3, P. 3, Cap. 8, fls 181

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quinta-feira, 25 de julho de 2013

Covilhã - Inquéritos à Indústria dos Lanifícios XX-XVIII

Inquérito Social XVIII


     Continuamos a publicar um inquérito social “Aspectos Sociais da População Fabril da Indústria dos Panos e Subsídios para uma Monografia da mesma Indústria” da autoria de Luiz Fernando Carvalho Dias, realizado em 1937-38.

Capítulo IX

Economia

            Através do inquérito a que os operários foram submetidos, foi-nos dado verificar que o aumento do salário estabelecido pelas circulares 5, 16 e 24 não pode considerar-se como um levantamento do nível de vida da população operária, mas como simples melhoria de vida em casos individuais bastante raros.
            Interrogadas muitas mulheres cujos maridos trabalham em fábricas de lanifícios, revelaram elas que o pequeno aumento de salário, provocado pelas ditas circulares, longe de significar um benefício familiar, veio a ser tomado pelos beneficiados como verba para extravagâncias.
            Se viviam já com o salário anteriormente estabelecido, exceptuados aqueles casos em que era de fome, tudo o que posteriormente se aumentou, significava, portanto, uma melhoria nas extravagâncias.
            Há casos, também, em si particulares, que não convém perder de vista: os daqueles operários trabalhando em contrato de empreitada que auferem ao fim da semana uma féria parecida com 130$00, que dela tiram unicamente 30$00 ou 40$00 para sustento da mulher e dos filhos e que gastam o resto na taberna onde são hóspedes permanentes de almoço, jantar e, sobretudo, de vinho.
            Tudo isto vem a propósito para referir neste capítulo alguma coisa do que seja a economia operária.
            Será o operário de lanifícios, em regra, pessoa que economize e atenda ao seu futuro?
            Há primeiro que ter em conta o seguinte: nem todo o operário pode economizar. Os encargos de família que às vezes são bastante pesados, a doença constante de algum membro da mesma família, e os operários com salários muito baixos, não podem juntar o seu pé-de-meia.
            Entre os tecelões mecânicos, o problema da exiguidade dos salários e a consequente impossibilidade de economia já não se pode pôr, pois como vimos no capítulo VIII, os seus salários dão margem à constituição de um pequeno pé-de-meia.
            Verifica-se, porém, que alguns prosperam ao passo que outros se mantêm na mesma situação; uns vivem em melhor casa; outros, ao contrário, com o espírito económico da formiga, vão vivendo pior, comendo pior, mas amealhando com o sentido no dia de amanhã.
            Estes aparecem-nos ao fim de alguns anos possuidores do seu tear, o que em outros tempos de liberdade podia ser princípio de acesso à indústria; aos outros assaltam-nos as crises ao caminho, vem o desemprego, a miséria e a velhice que os deixam ao desamparo.
            Dos primeiros, raros são porém aqueles que ascendem ao patronato, o que não quer dizer que, na Covilhã, pela longa tradição que a indústria de lanifícios aí tem, os industriais não provenham todos da lã, ou porque tivessem sido operários, ou porque os seus pais ou avós o foram.
            Esta recompensa do trabalho, tão evidente, não deixa de impressionar os operários a ponto de, em certa medida, criar estímulos fortes para que constituam o seu pé-de-meia.
            Se a ascensão directa ao patronato do operariado é vantajosa, por servir de exemplo e estímulo, tem por sua vez os graves inconvenientes que aparecem apontados no capítulo dedicado ao Patronato.
            Podemos concluir, pois, que a maioria dos operários não tem o espírito da economia, e que tudo que seja pagar-lhe mais que o suficiente é, por enquanto, contribuir para a sua desmoralização. Ganhará ele, porventura, já o suficiente? Seria o primeiro problema a resolver.
            Segundo o direito natural, todo o homem deve ter possibilidades de auferir pelo seu trabalho o necessário para constituir família e a manter-se decentemente no seu escalão social.
            Ora a verdade é que um operário com uma família regular, que entre nós é de 5 a 6 filhos, não pode sustentar-se com o módico salário de 9$00 ou 10$00 diários.
            Todas as relações sociais modernas tendem, por isso, a instituir um salário familiar; para isso deixamos neste Inquérito Social as bases essenciais para estudar os encargos das famílias operárias dos lanifícios dentro do nosso país.
            A existência desse salário de família viria a dar ao nosso operário possibilidades de se manter, elevando, ao mesmo tempo, o seu nível de vida.
            Como dissemos atrás, devemos aqui repetir que ele por si não tem espírito económico, sendo por isso essencial a criação de caixas de previdência que lhe administrem todo aquele excesso de salário que venha a receber e que não seja estritamente necessário à sua vida normal. É preciso não esquecer que o homem previdente não é o homem da selva, mas aquele que foi já trabalhado pela civilização.
            Aonde ir buscar o dinheiro necessário para a instituição dessas caixas de previdência, se já dissemos que o salário dos operários não computava geralmente esse encargo? Devemos ir buscá-lo somente ao magro salário dos pequenos ou somente também aos lucros excessivos dos grandes? A solução justa seria levantar os salários dos operários dentro de um critério de justiça social, esse aumento representar um encargo que os operários davam para a aquisição de um benefício de que eles eram o objecto, e o patronato concorrer também, independentemente desse aumento, de forma a colaborar segundo a doutrina corporativa na assistência ao mais desprotegido factor da produção.
            Não pretendemos afectar os interesses legítimos do patronato: se o operário não é anjo a cujo excessivo bem-estar se sacrifiquem os interesses legítimos dos outros colaboradores da produção, também não é animal a quem se explore a necessidade.
            Mas interesses legítimos do patronato, é preciso não esquecê-lo, são aqueles que não afectam os direitos à vida honrada dos outros.
            O lucro absoluto não se explica nem tão pouco são de admitir luxos nas classes dirigentes enquanto houver operários sem trabalho.
O regime corporativo é um regime fundado na solidariedade social.
            Pela lógica do sistema, um patrão que despede operários não tem o direito de viver como um príncipe, para poder exigir uma diminuição de horas de trabalho tem que demonstrar-se que se procede assim porque seria socialmente mais grave para os que trabalham, que para os que dirigem, seria a ruína se não se adoptasse essa diminuição de horas.
            Para que o operário possa economizar e atender ao futuro dos seus, é preciso que se não explore a sua necessidade; doutro modo seria cair, dentro de uma economia organizada, no mesmo defeito que a livre concorrência originava, ainda com a agravante de o ser agora sob a tutela das Corporações e do Estado e sob o império “inefável” da lei.

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            Um dos sintomas mais característicos do espírito de economia do operário de lanifícios é, sem dúvida, a posse do instrumento de trabalho, quando ele é o tear.
            Pela estatística sobre os teares manuais, publicada no capítulo consagrado à “grande e pequena empresa”, tivemos ocasião de verificar que esta espécie de teares fazia, ainda hoje, parte da propriedade operária.
            Como o tear mecânico invadiu os grandes centros industriais, devido ao seu alto preço, é muito mais difícil que o operário o possua, possuindo assim o seu instrumento de trabalho.
            O sentimento económico que a posse do instrumento de trabalho reflecte o que, como Décamps, nós tivemos ocasião de verificar através deste Inquérito Industrial, deixou por isso de se revelar, nos grandes centros.
            Para se ver quanto nos pequenos centros a posse do tear manual reflecte o espírito de economia do operário de lanifícios basta relembrar o que dissemos no capítulo anterior, que o salário industrial dos pequenos centros surge como um salário complementar da agricultura e que na região de Avelar, grémio de Castanheira de Pera, os tecelões nos declararam que lhes convinha mais receber a féria ao mês, do que à semana porque, assim, recebendo uma soma mais avultada, a economizavam. Já revelei atrás este mesmo facto. Bastava-lhe a terra para se sustentarem.
            O regime de trabalho nas regiões similares a esta é, em verdade, caracterizado pela sua inconstância. Esta inconstância é bem diferente daquela que verificamos existir nas grandes empresas de tecelagem. Esta, que surge nos pequenos centros, filia-se no conceito que o operário tem do trabalho industrial como trabalho extravagante para melhoria de salário, uma espécie assim de trabalho complementar, de distracção dos afazeres campestres, donde o facto de ser sempre sacrificado às necessidades do campo.
            Em muitas aldeias do concelho da Covilhã, embora o regime de pagamento de salários seja diferente, encontramos também em certa proporção este tipo de trabalho na tecelagem, revelando a mesma tendência de poupança e de amealhamento que acabamos de apontar no grémio de Castanheira de Pera: operário possuidor do seu tear, trabalhador do campo e, nas horas vagas, tecelão.
            Na Covilhã como se pode ver pela estatística dos teares mecânicos na posse de operários, verifica-se uma tendência nascente para possuirem este caro instrumento de trabalho e de aplicarem as suas economias, à aquisição dele. Se outros fossem os rumos por que se deseja conduzir a organização industrial, creio bem que este tipo de operário, possuidor do seu instrumento de trabalho, havia de continuar a ser o grande fulcro da economia operária da Covilhã e o caminho certo que conduziria os operários à melhoria da sua condição social e económica. Mas nisto, como no resto, seguindo o exemplo de alguém, não louvo nem censuro, digo simplesmente aquilo que me parece.
            Para a organização de uma economia industrial de tendências capitalistas, este tipo de operário pode ser insustentável e até nefasto, mas se atentarmos bem no seu “métier d’homme”, como hoje soe dizer-se, seria socialmente o tipo recomendável, a quem as crises levemente beliscariam e a quem o virus comunista dificilmente poderia corromper.

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            Do que a propriedade da casa de habitação e de qualquer geira de terra significam na economia e no espírito poupado do operário de lanifícios basta reflectir sobre esta verdade: um operário económico é um operário próximo da propriedade, um operário proprietário é um operário interessado, um operário interessado é um operário patriota.
            A propriedade de casas e de jeiras de terra é suficientemente elucidativa da vida da população, cujos hábitos e maneiras de ser temos estudado, para que numa vista de olhos sobre as estatísticas publicadas, no capitulo V, mostram ao leitor a importância desta matéria.

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            Caminhar de novo para a propriedade do ofício parece-nos ser o meio de tornar proprietários, com todas as vantagens patrióticas que esta ideia encerra, aqueles para quem a terra não chega e a quem é essencial estabelecer uma vida económica estável.

As Publicações do Blogue:
Capítulos anteriores do Inquérito Social:
Inquéritos III - I
Inquéritos IV - II
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Inquéritos VII - V
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segunda-feira, 22 de julho de 2013

Covilhã - A Alcaidaria VI

     Continuamos a publicar os documentos sobre a alcaidaria da Covilhã. Procuramos seguir uma ordem cronológica.
     Hoje apresentamos D. Cristóvão de Castro, filho natural do alcaide-mor D. Rodrigo de Castro. D. Cristóvão, que tem uma rua na Covilhã, (1) nasceu nesta cidade em data incerta, terá sido embaixador ao Papa Alexandre VI, Deão da Capela Real, provido em Igrejas do Padroado Real, Capelão-mor da Infanta Dona Maria Manuela e em 1550 confirmado e sagrado Bispo da Guarda. Faleceu em 1552 e está sepultado na Covilhã, na Igreja de S. Francisco, na Capela dos Castros. (2)
     Como Bispo da Guarda visitou quase todo o Bispado, produziu alguns diplomas e ocupou-se com o início da construção do extraordinário retábulo maneirista que se deve a João de Ruão e se encontra na Sé da Guarda.

O Retábulo - Sé da Guarda

     É como capelão-mor da princesa Dona Maria Manuela, filha de D. João III e esposa do príncipe Filipe, futuro rei de Espanha e de Portugal que o encontramos em Valladolid, donde escreveu várias cartas ao rei D. João III. Alguns exemplos, cujo âmbito e data são os seguintes:
- “Dando parte a D. João III da grande necessidade em que se achava a casa da Princesa...”, 25-10-1544. (3)
- “Dando parte a D. João III dar-se por certo que com a nova paz viria a resolução do Imperador sobre o assento da Casa da Princesa e aumento de renda que tanto necessitava, que precisava de Donas e camareira-mor e que seria bom nomear-se embaixador para aquela corte”, 26-10-1544. (4)
- “Dando parte a D. João III chegar o núncio a Valladolid ao qual deu a carta do mesmo senhor, participando-lhe a ordem que tinha para o suspender na mesma vila...”, 8-11-1544. (5)
- “Dando parte a D. João III da partida do príncipe e da boa saúde da princesa...”, 8-11-1544.(6)
     Encontrámos no espólio de Luiz Fernando Carvalho Dias a cópia de uma outra carta, datada de 29 de Abril de 1544, que não vimos relacionada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT - digitarq.dgarq.gov.pt). Por comparação com as da Torre do Tombo deduzimos que a Carta seja dirigida a D. João III sobre a sua filha Maria Manuela, de 17 anos, casada de 1543 a 1545 com Filipe (futuro Filipe I de Portugal).Vamos publicar esta cópia que nos traz muitas achegas sobre estes casamentos diplomáticos e sobre os séquitos que acompanharam as princesas portuguesas pela Europa fora. 

Dona Maria Manuela (1527-1545)


Carta de D. Christovam de Castro

Senhor Deus sabe que desejo em cabo servir bem a V. A. e a princeza sua Filha e que procurei por isso sempre, quanto possível me foy, desde que S. A. partio de Lisboa, athe ho presente com muita continuação e tanto fervor e gosto que maior não pode ser, por que tinha entendido e conhecido fazer nisso muito ho que devo, e som obrigado, e como ho meu principal intento hé servir V. A. e a isso vim a Castela sem ter respeito a outra cousa alguma sinto muito, coando o não posso fazer e se me offerecem impedimentos pera isso, e tambem sinto igualmente, coando vejo acontecer a outrem ho mesmo, e deixar de fazer seu Officio, como deve per algum descuido, porque creio resultar tudo em dano e perjuizo da princeza, e do que compete ao serviço de V. A.  e porque eu enxerguei algumas faltas no caminho athe chegar aqui a princeza e aqui depois de chegada pelas quais a princeza não era tambê servida, como parecia razão, e cobrava indo já fama de descuidada em algumas cousas que o meu juízo era grande mal e doendo-me a mim isto muito, ho escrevi logo a quem ho devesse a V. A. para que provesse de remediar com tempo porcoanto eu receava que não ho fazendo mui cedo, averia mudanças novas nesta caza, por levarem as couzas caminho disso, e não me atrevo entoncez dar a culpa delas aquem eu via que a tinha por alguus respeitos avendo, que abastava falar na mudança da caza, a coal se não podia entender na propria pessoa da princeza que nehua via.
Agora vendo a pouca emênda que ha nas cousas, e temendo empeorarem, me pareceo necessario e obrigação muy devida, pois ma aqui acho, tornalo a fazer saber a V. A. com alguma mais decraração, porque não he já tempo doutra cousa, nem se pode tanto sofrer e dissimular e também lhe darei conta dalgumas cosaS, que me a mim tem sucedido, não per modo de queixume nem com Zello de mal fazer, se não pera que V.A: proveja em tudo como vir, que mais compre a seu Serviço e da Princeza pela muy grande necessidade que disso ha, antes peço muito por mercê a V.A. e pelo amor de Deos, que pois meu motivo principal é servido não redunde um dano doutrem, e em prejuízo de minha consciência , e honra per nehua via, que possa ser, e que V.A. me faça tamanha mercê q esta minha carta, que com muita difficuldade ousei fiar de Pero de Souza com coanto he pessoa pera isso, e muito mais que V. A. haja por seu serviço, não pasar ela a poder d’outrem e em confiança de ser asim, e de me levar em conta coaisquer deffeitos, e atrevimentos, que nela por mim passarem, porque lho merece a muy grande affeição e devação, que a seu serviço tenho.
Digo, Senhor, primeiramente, que cuidando muitas vezes  nos muitos e grandes descuidos, que por nós passam cada dia no Serviço da princeza, para o qual V.A. nos escolheo, me corro envergonhado disso tanto, como se todos carregassem sobre mim soo, e não posso entender como isto he, ou possa ser, porque craro estaa a grande obrigação que por isso temos a V. A. pela qual ainda que todas as outras cessassem, o haviamos de servir muito melhor, do que o fazemos, senão que não somos pera isso e esta é a verdade, e me parece a melhor desculpa que podemos dar por nós. per outra parte, Senhor, me espanto muito, que pera huma cousa tão importante, e de tanto peso, como he o serviço da princeza de Castela, huma só Filha de V. A. e dele muito querida, segunda fama, e as obras demonstram, tendo a sempre distinada pera este Estado, e vida V. A. casi á ora de sua partida lhe ouvesse de dar de novo todos seus officiaes, e asym os mandasse boçais, sem ver, ou saber, primeiro quê mandava com sua Filha.
           Eu escrevy a V. A. se me bem lembro nesta derradeira carta, que a Princeza se tina muito emêdado dos seus vagares, e que sua caza andava posta em muita mais ordem, do que sohia, e asy era verdade. Depois tornarã todas as cousas, ou cazi ao que sohião, e algumas parece que empeorarão, a culpa disso sem duvida não he da Princeza, porq a sua idade a desculpa, e ainda prometo a V. A. que achará   por verdade, que é dina de muito louvor, por muitas cousas bem feitas, que faz, e ordem de seo proprio moto, e bom natural, mas nós outros sem officiaes somos os culpados em tudo, e os que a infamamos de descuidada e vagarosa e eu, como novo, e ignorante em meu officio faço nelle e no que a elle toca mil erros. Ho mordomo mor que é o da caza, contra cuja fidalguia, bondade, limpeza e honestidade seria mui grande erro e pecado mortal ousar ninguem falar palavra, antes sem duvida e por estas cousas, que nele há em muita abastanza, e pelo muito trabalho que tem sofrido, e sofre é merecedor de toda a mercê, e fará outros muitos, porque sendo seu oficio de muita autoridade e gravidade, faz-se com todos tão familiar, que se faz desistimar, e os criados da princeza ficam por isso desordenados, e sua Caza desautorizada, e com a sua muita brandura, e sofrimento não he dele repreender cousa alguma, sendo necessario repreender muitas, e emendálas, e lembrar outras onde vir ser necessario, não uma mas muitas vezes sem ter disso pejo algum, que se ele o não fizer, quem o fará, e sobre todas as cousas havia de ser huma sobre rolda pois hy à disso necessidade, de sorte que eu entenda que ele olha por mim, e attenta por como sirvo meu officio, e cada um dos outros cuide o mesmo por si, porque uns com vergonha outros com receio, fação todos o que devem, e são obrigados, e pode ser que se ele tivera os Spiritos mais espertos, e huma pouca de mais colera, que muitos descuidos e mais recados são passados que se poderão escusar.
          Ho veador é muito bom homem pera não apartar, a meu entender, nenhuma couza da fazenda da Princeza, em que ele tiver poder por razão de seu ofício, mas antes aproveitará quanto poder, he um pouco descuidado assim nas couzas da cozinha como da meza, pelo coal, algumas vezes a princeza não he bem servida, vem tarde ao Paço, sendo necessário vir cedo pera o acompanhar, e poer em ordem as couzas: hé ás vezes pouco sofrido e supito em castigar sem ter respeito ao lugar e às pessoas. Dia de Entrudo, porque a Princeza, por ser tarde pera ouvir missa, se não acabou de vestir, mandou que se cerrassem as janelas, e despejasse a caza: acabando de a ouvir, recolheo-se e tanto que voltou as costas, hum moço da capela, acodio a tirar huu pano da cortina, que estava à porta, como he costume fazer-se, por Se não tratar mal dos que se acodem pera entrar, e o veador, cuidando que a Princeza estava ainda hy, deo lhe com a Cana duas ou trez vezes d’encontro, e porque o moço lhe disse, que bem sabia ho que fazia, e dizia-lho porque a princeza era já ida, virou o vedor a cana, que he de Bengala, estando a cruz ainda alevantada, e o mordomo mor, e eu junto dele, e deu ao moço trez ou quatro pancadas com ela, boas, de que eu fiquei frio, e contudo quiz dissimular, e passando pera dentro lhe disse que olhasse não incorresse em alguma excomunhão, acabando eu de dizer isto, tornou de novo ao moço e dera até o matar, se eu não mandara ao moço que se tirasse de diante dele, coando vi tanta demazia disse-lhe que era aquilo mui mal feito, e que eu nunca vira outra tal. ho Mordomo mor encapotou-se com uma capa, que lhe não parecia o rostro, e sem falar palavra foi-se para hum canto da Caza, eu fiquei tão agastado e anojado, como era razão que ficasse e confesso a V. A. que com algumas refregas e tentações de não servir mais este officio.
          E asy no fim da coresma estando a Princeza às completas na tribuna e a Duqueza de Alva com ela, e outras Donas, mandou o veador pelo porteiro da capela chamar um Reposteiro, e porque não veo desceu abaixo, e logo ao pé da escada topou com um, que foi criado de minha irmãa, q se lhe vinha desculpar, e dizer que não era a semana sua, e que tinha a seu carrego a almofada da Duqueza, de que havia de dar conta, mas o veador, sem lhe receber desculpa, lhe deo com a cana, tantas e tamanhas pancadas que ao arroído delas e brados do rezposteiro (sic) acudi eu de cima a lho tolher, não sabendo quem ele era, e quando cheguei estava já todo escalavrado pela cabeça, e esteve até agora em cura, que já vai servir  por lho eu mandar, que sua vontade era tornar logo a Portugal.
          Esta estada na tribuna ordinariamente do veador, enquanto a Princeza ouve os officios divinos, me parece que se devia escusar, porque dali quer mandar todas as cousas, que à pera fazer na Caza asi da cozinha como da Menza, e nunca fazem Reposteiro, e moços da Camara, se não ir e vir a ele com Recados e a Tribuna é mui pequena, e está sempre cheia de Damas, e de Donas, e o Principe defronte, afora outros inconvenientes que callo.
          Na camareyra mor sobre quem carregão e estribam as couzas de mais preço e importancia, como é a própria Pessoa da Princeza, e toda sua caza das portas adentro, também cuido se acharão alguns descuidos , e defeito, se bem buscarem, mas porque não pode ser que a V. A. sejam ignotos, me não entrometo nelles , com quanto tento muy grande magoa, e sentimento pela grande perda que a Princeza tem recebido por seus descuidos: foy grande desastre, e má ventura, não se achar quem ocupasse este seu lugar mais devidamente, e a meu ver, não muito acêrto trazer consigo tantos filhos, e Netos não tão bem doutrinados, como deviam de ser, com hos coais se occupa, e per ventura se aconselha.
          Dia de cinza vindo um Bispo para a poer à princeza, cheguei-me à senhora Camareira Mór, e pedi-lhe que se passasse a uma certa parte por dar logar à Princeza que avia de sair fora da cortina, e ao Bispo, não se moveo.
          Entrando o Bispo na tribuna, tornei-lhe a pedir que desse logar, respondeu-me com grande desdem, e em finta que não queria, e o mesmo sua Filha, e nisto era já o Bispo com nosco, e a Princeza fora da cortina, entonces o fez mal e per mal cabo, pareceo-me isto tão mal que me não pude ter que o não dissesse logo ao Embaixador de V. A.  e ao mordomo mór, que presentes erão, e ao Secretario que eu tenho por uns bons homens, que a Princeza traz em seu serviço, e mais abile pera todo bem fazer depois do Padre Frey Antonio seu confessor, se tivera saude.
          Quinta Feira vinte e quatro deste mez levantou-se a Princeza tarde, porque tomou o dia dantes huma purga, e como eu sempre trago ho temto nas Oras, porque não passem sem a Princeza ouvir Missa, mandei lhe dizer por Joana da Fonseca, que erão já as onze oras, e tres coartos de ora, porque assi era verdade, e dahy a pouco entrou para lá ho mordomo Mor ; coando me pareceo, que o coarto de ora seria casy gastado, entrei eu tambem, a achey o Mordomo Mor que estava esperando a Princeza de fora de fronte da porta, cheguei-me a elle, e mandei por Gomes Freire dizer à Princeza, que me desse S. A. licença para mandar começar a missa, porque era meyo dia, a isto levantou Dona Izabel de Mendonça a guarda porta, e em me vendo disse pera a Princeza, Senhora, está aqui Dom Christovam, e diz que são onze oras e trez coartos, e dizendo isto, arrebentou com rizo, porque parece, que tinhão já havido zombaria sobre o recado, que eu tinha por Joana da Fonseca mandado, coando vi o rizo tamanho, e tão piquena conta se fazer ainda agora de se passar ho tempo da Missa, respondi-lhe um pouco desentoado pera que me a Princeza ouvisse, que era mui boa cousa fazer-se zombaria de Deos, e dizendo esto, sahi-me pella porta fora, a Princeza me mandou logo recado, que se começasse a missa, e aasim se fez.
          Ho tesoureiro da Capela para dizer huma missa cantada, ou rezada he onestamente suficiente, e com coamto não sabe Latim, e pera o carrego, que tem, he huma das destemperadas e desatentadas Pessoas que vi, de sorte que tenho o maior trabalho do mundo em o sofrer, aconselhar, e temperar com os capelães, com os coais anda sempre em differenças sobre seus guisamentos, e outras cousas semelhantes porque querem tudo fazer ho que lhe vem à vontade dos moços da capela não sabe mandar se não trez pedras na mão, ainda que sejam homens barbados, pelo que às vezes se afastam do serviço quando mais são necessários, e assi da mesma sorte se á comigo com que algumas oras me vejo tão corrido, e envergonhado, que não sei parte de mim; pocos dias à, que ameaaçando ele perante mim perante a um moço da Capela, e jurando lhe pelos santos Evangelhos, que lho avia de pagar, porque suspeitou que me viera dizer de um pano distante que ele não queria dar, dizendo-lhe eu que não fosse tão solto, e que olhasse onde, e como falava. Lançou mão ás barbas em presença de muitos cantores, e capelães, e outragente, e disse-me que per aquelas isto não passasse assy muito tempo.
          Outras muitas couzas, asi dele, como de outra sorte poderia dizer, que merecem muita emenda, que calo, porque seria processo infinito dizê-las todas, como são as sangrias e purgas, que se dão à Princeza muy desnecessárias, e asentar-se Antonio de Melo no serão com as Damas, não ho fazendo cá, senão grandes, estando em pé, muitos condes, e outros homens da grão sorte zombando disto:  e pelas que mais em particular me a mim tocão lhe beijarei as mãos faze-lo asy, porque já, que Deos livrou dos perigos passados, e menos cabos, e afrontas vergonhosas, a que eu nunca fuy acustumado, as quais sofri, e dissimulei, e passei com a mais paciência, que pude, por não virem a praça; crendo que cumpria muto a serviço de V. A. fazê-lo aSim, não queria que me tornassem a tentar outra vez, porque poderia ser estar menos provido de paciencia, que os dias passados.
          Nosso Senhor a Vida e Rial Estado de V. A. guarde, e prospere por muitos infindos annos a seu Santo Serviço. Amen. Em Valhadolid aos vinte e nove de Abril de mil quinhentos quarenta e quatro = Dom Christovam de Castro.  (7)

Nota dos editores – 1) “Toponímia Covilhanense”, Câmara Municipal da Covilhã, 1982.
3) ANTT – PT-TT-CC/1/75/77
4) ANTT – PT-TT-CC/1/75/80
5) ANTT – PT-TT-CC/1/75/94
6) ANTT – PT-TT-CC/1/75/93