quarta-feira, 22 de junho de 2011

Covilhã - Sobre o Processo da Inquisição de Gonçalo Vaz V

Transcrevemos hoje a confissão de Gonçalo Vaz, iniciada em 15 de Setembro de 1569, no seu Processo na Inquisição de Granada.(1) Posteriormente faremos o mesmo com as testemunhas que intervieram no Processo da Inquisição de Lisboa.
Queremos deduzir, quer dos depoimentos do réu Gonçalo Vaz, quer dos das testemunhas, alguns rituais e costumes dos cristãos novos, pois os processos de Granada e de Lisboa foram levantados precisamente por suspeitas de práticas judaicas de Gonçalo Vaz. Todas estas declarações talvez devam ser sujeitas ao “crivo da verdade”, dado que é difícil sabermos se foram mesmo referidas pelo réu e testemunhas, ou se foram postas pelos escrivães na boca dos intervenientes no Processo.
Gostaríamos de vir a receber comentários de conhecedores do judaísmo que nos permitam perceber se ainda hoje estas práticas se mantêm, se são diferentes ou mais completas do que através do Processo somos informados.
Tendo por base o depoimento de Gonçalo Vaz, vamos agora apresentar uma síntese das normas religiosas referidas pelo réu:
- Não acreditam em Jesus Cristo como Messias, nem nos Evangelhos escritos por “pescadores”, os evangelistas. Nem na Ressurreição de Cristo. Nem nos milagres de Cristo narrados no Novo Testamento, porque só acreditam no Velho Testamento. A Virgem Maria não pode ser virgem e mãe e por isso Cristo não é filho de Deus. Não acreditam na presença de Cristo na hóstia consagrada. Não há purgatório, nem inferno e o paraíso é ver a Deus (?). Não aceitam imagens, porque elas são ídolos.
- Devem respeitar e acreditar na Lei de Moisés escrita “com o dedo de” Deus.
- Guardam os sábados, vestindo uma camisa limpa.
- 10 de Setembro (2) é um dia “muito santo”, e por isso       fazem jejum, não comem todo o dia, só se for às escondidas (3).  Neste dia Deus escrevia no Céu a vida dos homens.
- Também jejuam um dia em Janeiro (4), outro em Fevereiro (5) e em 14 de Março (6) que é uma festa dos Judeus, para recordar o fim do cativeiro no Egipto. Não comem pão com levedura.
- Praticam o Jejum da Rainha Ester (5).
- Fazem a leitura de o Saltério de David (os Salmos) uma vez por semana, sem dizer o Glória, porque Deus era só um (não acreditam na Santíssima Trindade). Há quem saiba salmos de cor.
- Têm várias orações em língua hebraica para rezarem quando estão com preocupações, ou na cama sem sono. Gonçalo Vaz tem uma oração da Rainha Ester que tirou da Bíblia e reza-a muitas vezes.
- Não devem dizer as orações da Igreja Católica: Ave-Maria, Pai Nosso, Credo, Salve Rainha.
- A Lei de Moisés não aceita o estudo da Astrologia, porque não se pode profetizar o futuro, cujo castigo é o apedrejamento.
- A Páscoa judaica: jejuar e comer pão ázimo. No sábado, véspera da Páscoa, comem “assaduras”.
- Podem casar segunda vez, mesmo estando viva a 1ª mulher (7).
- Depois de comer devem ler o Velho Testamento.
- Devem manter todos os rituais em segredo, mesmo com as suas mulheres.

Notas dos Editores – 1) Ver neste blogue Processo 2) Este dia é o mais importante do calendário judaico, denominado Yom Kipur e em Portugal também aparece nos processos com os nomes “ dia da Lua de Setembro, Dia Puro ou Dia Maior”. 3)”O jejum foi um dos preceitos judaicos mais conservados ao longo de 500 anos, após a conversão forçada, porque era mais fácil esconder a sua prática. 4) Suponho que Gonçalo Vaz se refira a um dia em memória do cerco de Jerusalém. 5) Este jejum é em Fevereiro, na véspera duma festa judaica. A Rainha Ester é uma rainha da Pérsia, heroína de um livro bíblico. 6) É a festa de Pessah ou Páscoa que comemora a libertação do povo judeu do Egipto e a sua identidade como povo. 7) Os Judeus aceitam o divórcio desde que o marido entregue à mulher uma “carta de guete”.
Fontes - Ver blogue “Do Capibaribe ao Tejo”, “Judeus -  Singularidades/Curiosidades”, 15 de Outubro 2010. “Dicionário do Judaísmo Português”, ed. Presença

Transcrição do depoimento de Gonçalo Vaz no respeitante a rituais ou costumes judaicos
     
“Proc. 7772 da Inquisição de Lisboa

Gonçalo Vaz

Confissão de Gonçalo Vaz em Granada, em 15 de Setembro de 1569

Compareceu Gonçalo Vaaz, natural de Covilhã, vila em Portugal, Bispado da Guarda, “ estudiante que oye Leys en el estudio de Salamanca “ de 22 ou 23 anos pouco mais ou menos. Que traz sobrecarregada a consciência por ter andado fora da fé. Que tendo dez ou doze anos ía a casa de uma velha que se dizia Filipa Dias, viúva, da vila da Covilhã, que o chamava para dormir com ela por ser muito velha e viúva e só, que morreu há quatro ou cinco anos, a qual lhe dizia que não havia de crer que N. S. Jesus Cristo era o verdadeiro messias, porque este ainda não tinha vindo e quando viesse havia de dar liberdade aos judeus, levá-los a Jerusalém e dar-lhes o Maná, que era porque o tinha por filho que lhe dizia isto, que não cresse nos sermões, que a ley de Moysés era a que se havia de guardar, porque Deus a havia escrito com seu dedo, e a do Evangelho fora escrita por uns pescadores, que havia de guardar os sábados, e que aos sábados se havia de vestir camisa limpa, que havia um dia muito santo para os judeus que era aquele dia 10 de Setembro e que nele não havia de comer de manhã à noite, que quando o fizesse, o fizesse secretamente. E lhe disse que isto tudo o tivesse tão secreto que lhe mandava Deus, que ainda que fora casado e estivesse com a mulher na casa, não lho dissesse e creo tudo isto até à quaresma passada deste ano de 69 em que ouviu pregar a djº de Payva, clérigo em Lisboa na Igreja da Misericórdia o qual repreendeo muito a dureza dos judeus e por ver que ele era grande letrado e de casta de confessor olhou para si e considerou que pois aquele sendo confessor e letrado tão grande dizia mal dos judeus via que ele confessante não andava por bom caminho. E vendo tantos cristãos e tão grandes letrados não era possível que errassem todos e assim andou nesta confusão até ao dia de N. Senhora da Natividade que ouviu fez oito dias estando em Osuna  e ouviu um sermão que se fez na Igreja Mayor e foi-se então confessar com um frade de S. Francisco cujo nome não sabe.

2ª Audiência
Que a dita Filipa Dias lhe disse que o dia 10 de Setembro era um dia santíssimo e que ele jejuou até ao ano passado de 68, e que a dita Filipa lhe dissera que naquele dia escrevia Deus no Céu a vida dos Homens. Que também jejuava três dias um em Janeiro e no de Fevereiro - que a dita Filipa lhe dissera que a 14 de Março era a festa dos judeus porque nesse dia tirou Deus aos judeus do cativeiro de Faraó e que nesse dia não se comia pão com levedura - Não sabe se a dita Filipa Dias a ensinou a outras pessoas.
Que depois de morta a dita Filipa, uma Gracia Fernandes, mercadora, mulher de Diogo Fernandes, tendeiro, x. n., que vive na Covilhã ao Pelourinho, que era muito sua amiga e ele está para casar com uma filha dela, perguntou-lhe quando calhava o jejum da Rainha Ester, dizendo-lhe ela que depois o avisaria. Três filhas desta Gracia prendeu a Inquisição de Portugal e ela refugiou-se fora destes reynos em França ou Flandres.
Estando em Salamanca tratou com Francisco Nunes (a), português, médico, natural de Estremoz, de quem era muito amigo, a quem comunicou o que Filipa lhe ensinara.
Disse a Francisco Nunes que comprasse o Saltério de David.
Veio a saber que Francisco Nunes fora preso em Valladolid com outros estudantes portugueses, um dos quais se chamava Marcos Dias (a), natural de Estremoz …

18 de Setembro de 1579
Tinha por costume rezar o Saltério de David uma vez por semana. Disse que no fim de cada salmo não dizia o gloria patris.
Que não dizia o gloria, porque não havia que dar glória mais que a um único Deus.

Procuradoria - 20 de Setembro
            Curador ad litem, por ser menor de 25 anos.

14 de Outubro
Audiência de acusação, onde lhe foi notificada a culpa.

18 de Novembro
            Nova audiência
Que se lembra que andando em Salamanca, lá estudava medicina um português chamado Marcos Roiz (a), que vendo a ele confessante andar tão devoto lhe perguntou como andava tão devoto e rezador. Respondeu-lhe que seria conhecer a Deus também, que rezasse por um saltério, ao que lhe parece que ele lhe respondeu que muitos salmos sabia de cor.
.
Marcos Rodrigues era de raça judaica de Estremoz, donde também era Francisco Nunes e, que cria também salvar-se na Ley de Moisés.
É admoestado para que diga mais coisas.
10 / 12 / 78
Procurador ( ad litem ) Djº Muñoz nada tinha a dizer.
É dado como confitente fingido e dissimulado, confessando só o que lhe parece.
Acusação:
3º - Ensinou muitas orações, uma das quais ainda na era “ sacada “ da lingua hebraica, para dizerem quando estavam atribulados ou na cama sem sono.
4º Que não deviam dizer orações da Igreja, como Pater, Avé Maria, Credo, Salva Regina.
Que Deus não tinha ressuscitado.
Que pelo que lhe disseram que Cristo tinha feito muitos milagres, disse que não era verdade e que só havia de acreditar o que estava no Testamento Velho.
Disse aos mesmos que a Virgem não tinha parido virgem, porque isso era impossível e daí logo Cristo não era filho de Deus.
Que não era possível numa hóstia estar o filho de Deus.
Dissuadiu certos estudantes em Salamanca de estudar Astrologia porque Deus na Ley de Moisés mandava que quem quisesse profetizar coisas futuras o apedrejassem.
Observaram em Salamanca várias Páscoas à judaica, jejuaram, comeram pão ázimo. Disse-lhes que havia de vir o Messias, que não havia purgatório nem inferno, que era a sepultura para sempre, e o paraíso era ver a Deus e o provava com a escritura; no Sábado, véspera de Páscoa florida comeram assaduras por guarda da ley de Moysés, instruía pessoas na Bíblia, que o Messias havia de vir, ria-se das imagens, tratou de casar segunda vez uma pessoa casada, trazia autoridades para provar que adorando imagens de cristãos adoravam ídolos, que os cristãos se não salvavam, que quando se via uma testemunha fazer obras de cristão lhe dizia que estava pensando que estava em glória, mas que estava no inferno.
Disse à mesma testemunha que havia outras pessoas da Covilhã que faziam as mesmas obras que ele e não as confessava.
Como hereje e apóstata, dogmatizador de herejes, ficto e simulado confitente, requeria-se para que fosse relaxado à justiça e braço secular.
Lida a acusação disse que quanto ao geral nada tinha a dizer, quanto ao particular respondia:
“ Que Francisco Nunes vivia numa casa próximo da sua, na Calle de Pero o Coxo, entre S. Cristóvão e Stª Clara, lhe disse que se quisesse jejuar era da manhã à noite, etc..., fala outras vezes nas préticas com Marcos Roiz. Demonstrou depois a Francisco Nunes algumas autoridades de Saltério por onde demonstrava que a Ley de Moysés era a verdadeira, que negava que tivesse dito que não rezassem o Padre-Nosso, Ave-Maria, etc. a tal oração ainda não traduzida, negou tudo.
Audiência - 12 / 12 / 79
Que sobre os cristãos novos da Covilhã disse que todos ou a maioria eram judeus, que o disse a Francisco Nunes, mas não disse quem eram e que se referia a dois companheiros irmãos que se chamavam Diogo Roiz (a) e Jorge Roiz (a), que estudavam Artes em Salamanca, hospedados na Calle de Pº o Coxo um ano, e outro na Calle de Rabanal e que estes eram todos os da Covilhã que conhecia.
Sabe que são judeus por terem jejuado várias vezes com eles e por ter praticado várias vezes com os mesmos sobre a Ley de Moysés - a cuja casa vinham outros com o já referido Fonseca, que era natural de Castelo de Vide - na Calle de Pº o Coxo se descobriram uns aos outros que eram
- Gaspar Nunes (a), de Torre de Moncorvo, estudava medicina
-Álvaro Paez (a), de Castelo de Vide, estudava então Artes
os quais todos judaizavam - Francisco Nunes nunca lhes mereceu confiança.
Diz que não se recorda de ter falado a mais alguém.
A 12 / 12 outra audiência :    
Treslado em latim da oração encontrada na Bíblia do Fonseca. Tirou-a de uma carta de Stº Agostinho que referia os milagres da Ley Velha, agora responde quase sempre que tudo podia ser, mas que não se recorda.
- há onze ou doze anos que tinha a Lei de Moisés - até ao ano passado de setenta e oito.
A Álvaro Paez é que ouvira fazer broma da virgindade da Virgem, mas não se recorda dele o haver tratado com os companheiros em Salamanca.
Audiência - 13 / 12
Foi Álvaro Paez que converteu ao mosaísmo - Marcos Roiz.
continua a confessar o que negara ou a dizer que não está bem certo.
- aconselhava-os a que depois de comer lessem o Testamento Velho que era a verdadeira lei.
- No fim de 67 Fonseca foi à terra e os companheiros deste por S. Lucar voltaram a Salamanca e ouviu dizer a estes companheiros que Fonseca se havia casado na terra. Quando este voltou a Salamanca, perguntou-lhe se já tinha casado ao que ele respondeu que não estava casado por mão de clérigo e que aquela mulher lhe havia “ hechizado “ e andava cego e daí a dias veio a sua casa um António Diogo, da Covilhã, o qual tratou com Fonseca se queria casar com sua irmã e ele lhe disse que sim e que Diogo o tratasse com Gonçalo Vaz. Este disse ao Diogo que o Fonseca era bom rapaz e ela ficaria bem casada, e o Diogo disse-lhe que havia ouvido dizer que o Fonseca estava casado em Penamacor ao que o Gonçalo Vaz respondeu que tinha tratado com ele e ele lhe dissera muitas vezes que não estava casado por mão de clérigo. Disse ao Fonseca depois que se estava casado não tratasse de se casar. Outra vez onde estava a moça, em Espanha, onde a trouxeram, disse-lhe o Fonseca que não tinha medo porque não estava casado e com isto se foi com o dito Diogo e nunca mais o viu. Sobre o assunto do casamento não torna a dizer nada, e nega que tenha dito ao Fonseca que podia pela Ley de Moysés, casar com outra mulher tendo a primeira ainda viva.
- O primeiro a falar a Francisco Nunes na Ley de Moysés, foi o Fonseca, tendo ele ficado quente e este aconselhou depois o Gonçalo Vaz que fosse falar com ele mais Gaspar Nunes porque era lido na escritura. Gaspar Nunes pôs então como argumento para o Francisco Nunes o problema de que os cristãos eram idólatras por via das imagens.
- Audiência (15 de Dezembro) como sempre estava presente o curador de Gonçalo Vaz - Diogo Muñoz - continuou a resposta aos capítulos da acusação.
Disse que tirou da Bíblia a oração da Rainha Ester e a oração que rezava aos Domingos a toda a hora que podia.
Que a oração grande, transcrita atrás, a rezava às vezes todos os dias, outras vezes de 8 em 8 dias.
- O Saltério deu-lhe Gaspar Nunes e os salmos estavam pontuados com letras, com a letra P no Domingo, com L ao Sábado, etc...
Gaspar Nunes (a) lhe ensinou isto.
As orações da Rainha Ester e a grande não lhe ensinou ninguém; mas que estando um dia em Valverde (b), lugar de Castela, na raia desta com Portugal, em casa de seu irmão, que aí estava homiziado pela morte referida, tirou-as dum livro d’ horas de um aduaneiro porque gostou delas e as outras da Rainha Ester as tirou da Bíblia.
Confessa-se que sabe as 4 orações que todo o cristão deve saber, o que espera salvar-se na lei de N. Sñr. Xto.”

Nota dos Editores – a) Ver neste blogue inscrições na Universidade de Salamanca. b) Valverde del Fresno. 

Publicações neste blogue sobre o processo de Gonçalo Vaz:



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