quinta-feira, 5 de maio de 2011

Covilhã - Subsídios para o estudo da sua Heráldica de Domínio

            A Covilhã foi restaurada e povoada por D. Sancho I em 1186, data do seu foral, mas a vila era mais antiga como se depreende da doação do seu eclesiástico à Diocese de Coimbra e de outros documentos cuja enumeração não interessa a este trabalho.
            Do seu foral, que é o de Évora, consta que a vila era povoada de cavaleiros e peões. Constituem lugares privilegiados o concelho, o mercado e a igreja. De entre os privilégios que enobreceram a vila sobressai o dos peões terem sido considerados em juízo, cavaleiros vilãos de outras terras, e o dos cristãos, ainda que servos, que vivessem na Covilhã durante um ano terem sido considerados livres e ingénuos com a sua descendência.
            Nossa Senhora do Castelo foi o orago da matriz, mas durante a Idade Média floresceram outras freguesias, tantas que chegam a contar-se dezassete dentro do cerco da vila. Registamos além da matriz, Salvador, S. Pedro, S. Paulo, Santa Madalena, Santo André, S. João da Manta, S. Vicente, S. João do Hospital, S. Bartolomeu, S. Domingos, S. Martinho, S. Miguel e S. Lourenço, etc.
            Não é conhecido nenhum selo do concelho em documentos medievais, mas sabe-se por documento de 1230, que no concelho havia selo e signa, porque aquele se encontrava aposto em documento ainda hoje existente mas cujo selo se perdeu e porque a signa presidia às “mesnadas” do concelho na guerra  e ia a Castelo Branco, para ser arvorada na torre principal e aí receber homenagem deste concelho. Contudo o simbolismo heráldico dessa época e as cores da signa desconhecêmo-las. Só no século XVI, os escritores de Alcobaça registam que as armas da vila são uma estrela de prata em campo azul, por estar situada na Serra da Estrela, mas não definem a estrela.
            A pedra de Armas mais antiga que se conhece estava enxertada nos muros da antiga Câmara e datava de 1612, data da reedificação. Mas a pedra não era homogénea .
            Constituíam-na três partes integradas num conjunto de modo a formar um escudo. O simbolismo desenvolvia-se deste modo:
            Em chefe as armas de D. Manuel, escudo real coroado, ladeado pela esfera armilar e a cruz da Ordem de Cristo e no braço inferior da cruz, quatro traços em pala. No campo do escudo uma roseta ou espora vermelha e no pé uma cabeça de homem de longos bigodes, de cuja boca saíam três línguas.
            A cabeça pretendia-se significasse o Conde Julião, ideia plausível se atendermos estar nesta parte do escudo, ou pé, a data de 1612, portanto numa época em que os escudos de armas de domínio já tinham sofrido a influência das lendas de Frei Bernardo de Brito e seus sequazes na explicação da origem da toponímia.
            O edifício porém que as armas enobreciam sabemos ser parte de 1612, e outra parte dele, mais antigo, de 1518. Foi nesta última data que o Concelho se transferiu do alpendre de Santa Maria do Castelo para a beira da muralha, frente ao pelourinho.
            Admitimos por isso que o chefe de escudo é dessa data, tal como a roseta, espora ou moleta de campo. Parecem vir do reinado de D. Manuel, quando a vila alcançou o privilégio de realenga; as armas da coroa passaram para o chefe ficando em campo as da vila. Estas, segundo brasão da Câmara, seriam uma espora ou moleta, insígnia do cavaleiro, circunstância explicável pelos privilégios do foral.
            Os peões da Covilhã eram considerados em juízo, como já dissemos, cavaleiros vilãos de outra terra. A figura central do campo sugere uma espora ou moleta e não uma estrela porque se encontra furada ao centro, tal circunstância não deixa classificar essa figura como estrela, embora a forma como se desenvolvem os raios da figura possam parecer os focos luminosos que emanam dessa hipotética estrela...
            E os quatro discos em pala que descem da base da cruz sem a tocarem? Não o explicam os heraldistas, mas nós cremos que a explicação se encontra no Regimento dos Panos. O pano quatrozeno era assinalado por uma cruz e quatro riscos verticais e este pano era o pano, por excelência, fabricado na Covilhã, como se deduz de vários documentos.
            Outro brasão de armas existente ainda na Covilhã é uma pedra do século XVIII, no antigo palácio dos ministros sobre a praça fechada dos cereais. É um escudo quarteado que apresenta num dos quartéis uma estrela de cinco raios sobre um santor  ou cruz de Santo André. Este palácio dos ministros, ou dos juízes de fora e corregedores que vinham à vila, é uma construção do século XVIII, fica situado no Largo de Santa Maria e pode ter ligações com edifício mais antigo pertencente ao concelho ou ao mercado da vila. O que não resta dúvida é que este escudo quarteado representa uma fase mais recente na técnica das armas ou de domínio. A cruz de Santo André levanta porém um novo problema: será de facto uma cruz de Santo André ou serão dois bastões de comando?
            Este facto é importante porque a estrela não de cinco, mas de oito raios prateada e a cruz de Santo André figuram noutro monumento: a bandeira antiga da Câmara. Em igual posição estas duas peças assentam em campo azul ao centro de um escudo de tipo alemão, que aparece sobreposto à seda carmesim da bandeira, que por sua vez tem a forma do “palon“ do livro de Gratia Dei.
            Alguns autores que escreveram sobre as armas da vila quiseram ver neste santor uma representação das duas ribeiras entre as quais a vila se ergueu, mas não conhecemos maneira de heraldicamente considerar esses dois bastões em aspa como as ribeiras, pois nunca no Armorial Português assim figuraram.
            Também parece não deverem ser tomados como aspas, pois a sua largura e os seus ângulos reproduzem melhor a cruz de Santo André. Para explicar esta incidência duma cruz de Stº. André nas armas da vila há a circunstância da antiga freguesia desse orago, constituir na Alta Idade Média, com Stº. Estêvão e S. Martinho, um dos núcleos primitivos da vila -  a vila chã possivelmente anterior ao seu restauro por D. Sancho I, em oposição ao castelo onde predominava a matriz de Stª Maria.
            As fontes escritas das armas da vila não vão além do século XVI, e todas elas referem unicamente a estrela a que dão filiação geográfica. Porém, essa estrela nunca seria a estrela de seis raios, os dois triângulos sobrepostos do signo salomónico que Moura Quintela, na sua monografia, apresenta como as armas primitivas da vila. Tais armas não constam de nenhum monumento ou documento escrito, nem tão pouco a estrela de seis raios consta também da obra de Vilhena Barbosa e da colectânea das armas coloridas da mesma época. Seria antes uma estrela de oito raios, como aparece na antiga bandeira da Câmara.
            De oito raios são também as três estrelas do chefe do antigo brasão que encima a vetusta capela da Abadia de Stª Maria da Estrela, restos do velho Mosteiro do mesmo nome, na freguesia da Boidobra, arrabalde da vila; de oito raios é também a estrela do selo da primitiva Fábrica Real de D. Pedro II, que Gonçalo da Cunha Villas Boas, seu conservador, declara ser o brasão da vila (1683). Esta estrela tem no meio seis ruelas e uma no centro (in B.N.L., caixa 142, doc. 83).
            Também de oito raios é a estrela que figura no Cod. seiscentista, nº 273, (= 498), Col. G. -6 do Arquivo da Câmara Municipal do Porto, intitulado “Arte de Armaria e Brazões das Cidades e Vilas de Portugal“.
            A estrela de oito raios sobre os dois bastões em aspa, embora não contenha as vieiras, também pode aludir a S. Tiago, pois essas peças ligam-se às peregrinações compostelanas pois figuram nos pórticos da Basílica. E a Covilhã tinha um lugar proeminente, uma freguesia consagrada ao apóstolo; a sua feira principal, que vem desde o reinado de D. Afonso III, realiza-se a 25 de Julho sob a invocação do patrono dos Espanhóis. Entre os mais antigos documentos que se referem à Covilhã, um de 1192, pelo qual a Igreja que o doador tomara de presúria, era doada ao Mosteiro de S. Jorge de Coimbra, o que deixa presumir uma grande antiguidade. A estrela também figura na heráldica antiga como símbolo da Mãe de Deus, a Virgem Nossa Senhora. Sempre a Virgem foi considerada a protectora da Vila e sob o seu patrocínio e invocação esteve sempre a matriz de Santa Maria do Castelo.
            À estrela como divisa da Covilhã, referem-se Frei Bernardo de Brito, Brandão e Rodrigo Mendes da Silva, sem indicar o número de raios.
            No século XIX organizou-se outro brasão que consta de outra bandeira. É um escudo quarteado, tendo nos quartéis respectivamente as quinas e castelos do escudo real, a cruz da Ordem de Cristo, a esfera armilar de D. Manuel e a estrela de cinco raios sobre a cruz de Stº André. O escudo coroado era ladeado por dois ramos frutados de oliveira e carvalho.
             A última forma que tomaram as armas da Covilhã consta do Diário do Governo de 29 de Agosto de 1941.
            “De azul com uma estrela de seis raios de prata carregada por um rodízio de vermelho realçado de ouro, posto em pala. Em chefe e contra chefe uma faixa rodada de prata. Coroa mural de cinco torres. Distel branco com os dizeres Cidade da Covilhã a negro. Envolvendo o pé e flanco das armas as insígnias das ordens de Cristo e do Mérito Industrial, suspensas das fitas, tudo de suas cores.
            Bandeira quarteada de quatro peças de branco e quatro peças de vermelho. Haste e lanças douradas.
            Selo circular, tendo ao centro as peças das armas, sem indicação dos esmaltes, e em volta, dentro de círculos concêntricos, os dizeres : Câmara Municipal da Covilhã. Envolvendo o selo, as fitas das Ordens de Cristo e do Mérito Industrial, suspendendo as respectivas insígnias“.


Imagem: Wikipédia

            Este escudo de armas assenta num parecer do heraldista Afonso de Ornelas e não merece mais do que estes comentários. O rodízio, como insinua Santos Ferreira, é a roda do moinho de água. Com ele quis o heraldista oficial simbolizar a indústria indistintamente, e com as faixas bordadas as duas ribeiras que circundam a Vila, mas a indústria ou arte dos panos já estava simbolizada na cor azul que vestia o escudo antigo! Não era, portanto, de integrar uma nova peça e peça incaracterística no já tão destrambelhado escudo da Covilhã. E o rodízio é, em nosso fraco entender, o menos próprio para simbolizar a indústria dos lanifícios; não faz parte exclusiva da sua técnica industrial e como factor de energia utilizada, marca na evolução desta indústria um ciclo curto e ultrapassado. Sem sair do simbolismo clássico do armorial português, o cardo ou o fuso representaria muito melhor a característica da vila industrial covilhanense. A ribeira, no chefe também não quadra quando o campo apresenta uma estrela. Bastaria uma ribeira em contra chefe. Duas ribeiras, porquê? Se a de Goldra, a Carpinteira, a de Aldeia de Carvalho, a da Baiúca, a de Flandres, e a de d’ Água d’Alte, todas nos arrabaldes da Covilhã, representaram fases curiosas e distintas na evolução da nossa indústria?
            Fugindo do armorial, mas dentro de um critério específico que respeitasse o simbolismo clássico dos tecidos e da lã, quantas imagens belas haveria para caracterizar essa actividade!
            A heráldica de domínio de Inglaterra adoptou um critério curioso no caso de Bradford. Como sucede na Covilhã e certamente na maioria dos centros industriais, os lanifícios não são coevos da fundação das vilas. Os escudos de armas e os signos dos concelhos já existiam e eram velhos, quando os lanifícios começaram, desenvolveram-se e caracterizaram a vida desses centros num estado já adiantado da sua evolução; normalmente quando a vida administrativa já tinha séculos de existência e quando outros factores de constituição e desenvolvimento já operaram transformações e progresso.
            Talvez, por isso, os de Bradford mantiveram o seu brasão primitivo e, quando os tecidos de lã começaram a ser a principal actividade do seu burgo, limitaram-se a suspender o escudo por um bode e por um carneiro.
            Eis uma técnica curiosa e utilizável mesmo por aqueles que não consideram a heráldica de domínio arte em evolução, ideia que para muitos ainda pode ser discutível.

(Texto escrito na década de quarenta do século XX)

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